22.7.23

Grande Angular - Onde está o soberano

Por António Barreto

Fazer cair governos. Dissolver parlamentos. Aprovar votos de censura. Recusar votos de confiança. Desfazer coligações. Exigir demissões de ministros. Tentar ou forçar a substituição de Primeiros-ministros. Eis algumas das modalidades de democracia que bastantes portugueses apreciam. E que muitos políticos cultivam. Convenhamos que se trata de vícios nocivos. Nascem da instabilidade e geram a imprevisibilidade. Coisas que a democracia tem de tolerar, para ser sólida, mas que detesta, porque não são essas as suas especialidades. Talvez por terem estado décadas sem exercício democrático, os eleitores portugueses têm especial afecto por estes dramas.

 

O actual governo, de maioria absoluta, não dura sequer há dois anos. Isto é, menos de metade do seu mandato. Podemos fazer a avaliação em permanência. No Parlamento. Em Belém. Nos jornais e nas televisões. Nos corredores da Academia. Nas empresas. Nos sindicatos. Nos cafés. É bom que assim seja. Essa avaliação é um sal da democracia. Mas não é a democracia. Esta vive dos mandatos certos e seguros. De eleições regulares e com data marcada. Dos direitos políticos fundamentais, a começar pelo de voto, secreto e universal. E das liberdades essenciais para a realização de eleições, isto é, de expressão, reunião e associação. Por outras palavras, é ao povo soberano, ou ao eleitorado, que compete avaliar, recompensar, castigar e substituir. É uma das definições clássicas do sistema democrático: aquele em que o povo demite e elege o seu governo. Por outras palavras, aquele em que os cidadãos se vêem livres de quem não cumpre.

 

Várias entidades (jornais, agências, estações de rádio e televisão, empresas e partidos) fizeram ou mandaram fazer sondagens de opinião. A quantidade e a variedade não surpreendem: nas vésperas do pousio de Verão, antes do encerramento da Assembleia e a coincidir com o debate do Estado da Nação, justificam estas iniciativas. Há coincidência em muitos resultados, tal como há diferenças: nada de anormal. Resulta uma impressão geral fundada em alguns indicadores: a de que os eleitores estão inquietos com o custo de vida, a habitação e os serviços públicos, mas a sua primeira insatisfação é com o governo. Todavia, essa atitude não é acompanhada de uma outra, a da necessidade de derrube do governo, de demissão do Primeiro-ministro, de dissolução do Parlamento e de realização de eleições. Pelo contrário, as várias maiorias expressas não consideram que deva haver eleições antecipadas. Sábio povo e ponderado eleitorado! Os eleitores parecem dizer que sabem que são eles a fonte da soberania, que se consideram os únicos capazes de correr com um governo, de substituir um Primeiro-ministro e de eleger um novo Parlamento. Reconheçamos que é um sinal de maturidade: apesar de sublinharem que o pior da actualidade são as deficiências do governo, os eleitores preferem esperar pelo fim do mandato e pelas novas eleições regulares.

 

Esta é uma realidade importante: a democracia representativa vive de mandatos. Só em circunstâncias absolutamente excepcionais é que se pode encarar a hipótese de os interromper. Mesmo nessas circunstâncias, aliás, estão previstas as formas a adoptar e respeitar. De outra maneira, são os próprios princípios da democracia que estariam em causa. É preciso ter a certeza de que há ameaças e perigos para a democracia, que justifiquem uma interrupção. É necessária autoridade política e moral para levar a cabo tal decisão. É indispensável que haja legitimidade que justifique uma decisão tão extrema. É de absoluta mediocridade intelectual e moral, mas também de discutível legitimidade, interromper mandatos democráticos para favorecer amigos, vingar-se de adversários, incomodar concorrentes ou prejudicar competidores. Já tivemos disso tudo na história recente e nunca resultou, nem foi bom exemplo.

 

Como se pode imaginar, o argumento das sondagens é nulo e ilusório. Na verdade, as sondagens, essenciais para a democracia e fundamentais para a formação da opinião, são por definição volúveis e incertas. Temporárias de qualquer maneira. Transitórias de certeza. Traduzem estados de espírito do momento. Podem facilmente alterar-se com a permanente mudança de circunstâncias. As sondagens devem, por vezes, servir de úteis indicadores, de sinais e de informações sobre os espíritos, os sentimentos e as condições de vida dos cidadãos, mas não devem fundamentar actos tão graves como seja a interrupção de um mandato democrático regular.

 

Já se sabe que o “regular funcionamento das instituições” é um critério importante. Os obstáculos e as ameaças a tal condição são de extrema gravidade e devem ser removidos ou eliminadas a tempo. O problema é que a definição dessa situação é muito difícil e polémica. Mas, de qualquer maneira, não se pode resumir a “problemas sociais”, descontentamento, corrupção ou escândalos. Tudo isto é o pão nosso da democracia, nada justifica a quebra de mandatos legítimos.

 

O recurso à interrupção de mandatos é próprio de pequena política, de trica e intriga. É frequente em países ou situações que privilegiam a ruptura, o afrontamento e o combate. Forçar a queda de governos e de parlamentos é típico de democracias fracas, possivelmente adolescentes e seguramente imaturas. É a esperança dos que vêem sempre a sua fortuna no mal dos outros, dos que esperam que o mal dos povos seja a glória deles próprios.

 

É verdade que uma circunstância merece especial relevo: o voto de censura parlamentar ou a recusa da confiança. Não estamos perante uma interrupção forçada ou artificial dos mandatos, estamos diante de uma legitimidade insuficiente. Um governo necessita de ser reconhecido pelo Parlamento. Quer isto dizer que a confiança é um critério indispensável e que aquela resulta directamente da representação democrática. Nesse sentido, se o Parlamento pode dar a sua confiança, também a pode retirar. E se dá a confiança, também pode dar a censura. E a impossibilidade de formação de um governo, com confiança parlamentar, é um irregular funcionamento das instituições. 

 

A natureza parlamentar do nosso regime democrático é mitigada e sempre foi contestada. Quase toda a gente gosta mais do semipresidencialismo, do presidencialismo, de uma qualquer fora de cesarismo esclarecido ou de variantes iluminadas de substituição do soberano. São infelizmente tradições funestas de um país com poucas horas de voo democrático. Por isso, aos dirigentes políticos, compete, mais do que retirar vantagens do nosso atraso, contribuir para o seu desenvolvimento.

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Público, 22.7.2023

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