Grande Angular - Servir o povo
Por António Barreto
Os “grandes problemas” pesam como fardos. São triste sina. Ocupam os dias e a crónica. Mobilizam comentadores e jornalistas. Excitam ou fazem tremer políticos. Uns atacam a população, que os ressente: o custo de vida, os juros e a habitação. Outros, sentidos por toda a gente, nem sempre são de fácil compreensão: a inflação, os impostos e as migrações podem estar aqui incluídos. Outros ainda fazem mal a muitos e nem sempre é fácil perceber as suas causas. Entre estes últimos, figura a justiça, no estado miserável em que se encontra. Não só temos de suportar a incompetência, a parcialidade, o despotismo e outros defeitos indizíveis, como agora temos de aceitar as formas especiais de greve. Estas são feitas sem aviso, sem marcação de data, sem perda de vencimento para o grevista, mas perda de salário para o cidadão, com enorme inconveniente para milhares de pessoas que se deslocam inutilmente aos tribunais. A justiça, que deveria servir o povo, despreza-o e maltrata-o.
Há ainda um enorme sector, recheado de medonhos problemas, para os quais não parece haver remédio. Trata-se dos serviços públicos, da sua reduzida qualidade e da desigualdade que provocam. Dos serviços públicos primordiais, em primeiro lugar. Saúde, educação e segurança social. Encontram-se aqui os principais empregadores do país, a ponto que se pergunta se o seu fim é mais o emprego e menos o serviço. São os maiores consumidores de orçamento público. São talvez os serviços onde se encontra mais ineficiência, menor qualidade e funcionamento mais errático. As filas de espera, os atrasos no atendimento, a falta de cuidado, o desprezo pelos mais pobres, a falta de profissionais e a péssima organização são as características actuais de vários serviços públicos, designadamente da saúde.
Tão importante como os serviços primordiais são outras entidades que prestam serviços públicos de primeira necessidade (“public utilities”) e que fornecem ou distribuem água, electricidade, gás, telecomunicações, transportes, correio e recolha de lixo. Na maior parte destes casos, o problema não é o do atraso e da fila de espera, mas sim o dos custos leoninos, das mudanças contratuais impostas pela empresa, do ineficiente serviço de resolução de problemas e do tratamento ignominioso dos cidadãos que a eles se dirigem. São horas ao telefone, no “call center” com música enlatada, à espera de interlocutor, de marcação e de resolução. São serviços que reduzem qualquer cidadão ao desespero, que transformam os consumidores em pobres aflitos. É assim com os hospitais, as escolas, os centros de saúde e as repartições.
É difícil perceber as razões pelas quais as autoridades, os ministérios e as direcções gerais, entidades recheadas de pessoal, de técnicos, de especialistas e de ferramentas de estudo e cálculo são incapazes de prever as necessidades de médicos, de enfermeiros, de professores, de auxiliares de educação, de magistrados e de oficiais de justiça. Há cinco, há dez, há vinte anos que se pode saber quantos médicos e enfermeiros vão ser necessários e quantos professores vão ser precisos e em que áreas. E, no entanto, pouco foi feito para impedir as crises. Há anos que se conhecem os valores das necessidades em professores, das alterações demográficas, das reformas, das mudanças de residência e da evolução da procura. Pouco ou nada foi feito. Mais formação de pessoal, preparação de técnicos e construção de residências escolares: em quase todos os sectores educativos se sabia tudo, se podia prever tudo e pouco ou nada se fez.
Talvez o pior seja a saúde. Os problemas são mais dramáticos e urgentes. Mas imaginar que se tenha de esperar dias, semanas e meses por uma consulta, uma análise ou uma cirurgia deixa qualquer cidadão desesperado. Podemos pensar em todas as consequências. Doença, agravamento e morte. Incapacidade. Perda de tempo e de vencimento. Desespero. O sentimento do desprezo social. A opressão do mais pequeno, do mais fraco, do mais pobre, do mais velho ou do mais doente! Mais uma vez: há dez ou vinte anos que se sabe, que se sabia, que se podia ter a certeza de que iam ser necessários mais médicos e enfermeiros, em que especialidade e com que formação, em que regiões e em que instituições. O “maior orgulho da democracia”, o Serviço Nacional de Saúde, está a transformar-se no maior falhanço da democracia.
A prioridade dos últimos governos nunca foi melhorar os serviços públicos. Ter mais atenção e cuidado com os cidadãos, tratar melhor dos velhos e dos doentes e cuidar mais das crianças podem dar oportunidade a lágrimas eleitorais ou “sketches” parlamentares, mas não são tarefas atraentes para governantes sequiosos da elaboração de programas estruturais e de tremendas estratégias. Nem parece crível que haja mudança nos próximos tempos.
Os governos parecem mais interessados em distribuir e empregar do que em cuidar e tratar. As leis pouco resolvem, infelizmente. As entidades reguladoras são prisioneiras ou burocracias passivas. As soluções para estes problemas são difíceis. Os governos só conhecem um argumento: o voto. Já não é mau. Mas os eleitores nem sempre são claros no que esperam dos seus eleitos. Outras soluções devem ser procuradas nas empresas privadas que, por interesse e lucro, podem ver vantagens no melhor atendimento. Outra ainda é a concorrência. Enquanto se derrubarem monopólios ou quase monopólios, há esperança de melhoramento. Nem que seja, uma vez mais, por interesse. Outra via, a da imprensa livre e do jornalismo empenhado na qualidade de vida e menos obcecado com as “tricas” políticas. Finalmente, poder-se-á talvez, sem excesso de ingenuidade, depositar confiança nas associações de defesa de consumidores e de utentes, assim como nas entidades reguladoras.
Há esperança para a democracia? Sem dúvida. Em vários momentos e em diversas oportunidades. No dia em que os velhos votem de acordo com as suas necessidades e a sua condição de velhos. No dia em que os doentes votem a pensar nas filas de espera para a cirurgia e nos atrasos para consulta. No dia em que testemunhas, assistentes, queixosos, vítimas e arguidos votem para enviar um recado aos responsáveis pela justiça. No dia em que os utentes dos comboios suburbanos votem a favor de si próprios e contra os autarcas e os governantes que os desprezam. No dia em que clientes e consumidores escolham a concorrência e a alternativa, a fim de dar conteúdo prático ao seu gesto soberano. Nesse dia, há esperança na democracia.
Público, 1.7.2023
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1 Comments:
Deixar de ler, testemunhar, seguir Gautama?
A) «A decadência da Civilização Ocidental não valoriza os “senadores” e especialmente os velhos do Restelo que, como eu, não conseguem calar-se perante toda a irracionalidade e desacato que nos rodeia»-no blog Portugal Contemporâneo, em 4 de Julho-Joaquim.
B) Ontem, com Joana Amaral Dias numa TV, a trazer a lume, o desastre das centenas de milhões na via férrea, da linha Sines-Badajoz à sua extensão a todas as capitais de distrito e paródia Lis-Porto!
Um regresso ao século XIX, um "crime económico" a condenar o Portugal do futuro, uma ilha reserva da Europa!
Disto, lavam as mãos, os ministros da tutela, o Sr PM da estabilidade paroquial e até as oposições!
C) Das últimas governanças pró TAP e similares, que herança do talentoso Dr Costa para o futuro?
Com oposições titubiantes, sem rasgo que as diferencie da saga dos Devoristas (título Vasco Pulido Valente-séc XIX), meio século de governanças e agora sete anos com demasiadas promessas para fazer.
Mas pouco capazes de "fazer fazer", numa expressão de Joaquim Aguiar.
X) Valeria a pena pagar a assinatura do Público, para ler o 'senador' António Barreto e outros. Para quê, se ninguém quer saber? O grau de aprendizagem dos alunos neste ano letivo?
Alguma preocupação no topo do poder?
Que fazer, ainda, senão deixar de ler ou ver e tomar nota, salvo para esquecer os dias de eleições, ficando longe, a saber, em casa?
Cumprimentando o senador AB, que o Exmo PR bem poderia levar de quando em quando ao Conselho de Estado.
Basta.
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