13.5.23

Grande Angular - Prestar contas

Por António Barreto

É certamente uma das mais nobres e interessantes actividades da política: prestar contas! Aos clientes, aos militantes e aos apoiantes. Aos adversários, aos independentes e aos neutros. Às instituições, às empresas, aos sindicatos e às associações. Mas sobretudo aos eleitores.

 

A prestação de contas, um dos trunfos, uma das virtudes e uma das armas mais importantes da democracia, inclui actividades diversas. Por exemplo, comparar o que se fez com o que se prometeu. O que é anunciado nos programas eleitorais, os balanços e os relatórios, os programas para novas eleições e sobretudo a liberdade de expressão revelam o grau de cumprimento. A palavra dada foi cumprida? Será que se ficou aquém ou foi além? Os imprevistos justificam-se? Há quem proponha melhor?

 

Além de outras formas de prestação de contas, a mais importante, mais certeira e mais concreta é a que se traduz em custos. A noção de contas revela a sua absoluta adequação. Quanto custou? Quanto se gastou? Quem pagou? Como compara com o prometido? Justificam-se os custos a mais ou as despesas imprevistas? O que se gastou é superior ao que se ganhou? Quem ganhou e quem perdeu?

 

A nossa democracia, que faz em breve 50 anos, tem muitos defeitos e muitas virtudes. Como todas. Mas tem um mal particularmente chocante: a falta de prestação de contas. Curiosamente, não são só as autoridades que não prestam contas (o que prometeram e o que gastaram), como são as oposições que raramente se interessam por isso, provavelmente na esperança ou com o receio de que chegue um dia a sua vez.

 

Os orçamentos do Estado (assim como os orçamentos das instituições, das administrações e dos serviços) são belos exemplos desta falta de prestação de contas e da respectiva explicação. Diz-se quanto se vai gastar (é uma necessidade legal e contabilística), mas não se diz quanto se gastou, quanto se perdeu, quanto se ganhou. Quando se aprova um orçamento anual, nunca se tem em mãos os resultados do ano ou dos anos anteriores, o que faz com que o essencial das discussões se resume aos governos a gabarem-se do que querem gastar e as oposições a dizerem que é pouco, que não basta e que é preciso gastar mais com todas as rubricas: saúde, educação, obras, autarquias, estradas, segurança social e tudo o resto.

 

Por várias razões, entre as quais figura o desnorte actual do governo, vivemos tempos em que a ausência de contas e de prestação se faz especialmente sentir. As perdas imprevisíveis, como as das crises internacionais, da inflação, dos custos da energia, da guerra na Ucrânia e da pandemia, têm sido enormes e transformaram as contas em nebulosas. Mas isso, que os governos entendem ser justificações para a sua incúria, o seu abuso e o incumprimento de dever, é exactamente o contrário: tudo deveria ter como efeito uma maior exigência de informação, uma mais apurada prestação de contas e um reforçado rigor na sua apresentação pública. Mesmo a louvável e talvez bem conseguida política de “contas certas” tem que se lhe diga. Na verdade, as “contas certas” são de ordem orçamental, contabilística e global, não política, não democrática e não pormenorizada. São contas certas feitas de rubricas incertas.

 

Quanto se gastou já com o aeroporto de Lisboa? Em estudos, indemnizações, expropriações, contratos e preparativos? Quanto custou mudar três ou quatro vezes de ideias e de opiniões? Quanto custaram os projectos e as avaliações? Quanto está previsto que venham a custar os novos projectos e as novas avaliações? Quais são as implicações das mudanças e dos adiamentos? Em novos custos? Em obras na Portela? Em voos perdidos? Em passageiros, emigrantes e turistas desviados para outros aeroportos e outros países? Quanto se gastou e perdeu já em expropriações e indemnizações? Quem pagou umas e outras? Quanto se vai gastar a mais por causa do adiamento e dos atrasos?

 

Quanto se perdeu já com a TAP? Quanto custaram as fantasias da privatização, os pesadelos da nacionalização e a loucura da reprivatização? Quanto se perdeu com as compras, vendas e trocas de aviões e outros equipamentos pesados, com as indemnizações, os adiantamentos e as compensações devidas pelos negócios frustrados, pelas alterações imprevistas e pelas mudanças intempestivas? Quanto perdeu a TAP? Quanto a TAP deixou de ganhar? Quanto perdeu o Estado accionista? Com tudo o que se passou recentemente, que valor a TAP perdeu no mercado e quais as perdas potenciais que se verificarão, em caso de privatização? O que custou mais à TAP e aos contribuintes: as greves do pessoal ou a resistência do governo?

 

Quanto tem custado aos cidadãos a desordem nos transportes públicos, sobretudo nos comboios? Quanto tem custado a falta de manutenção e de investimento nos caminhos de ferro? Quanto já custou o fecho da linha do Douro e os estudos para a reabrir? Quanto se gastou com o frustrado TGV, cujos estudos iniciais se fizeram, incluindo primeiros investimentos, obras paradas e interrompidas, grandes indemnizações pagas a empresas de construção e eventuais expropriações? Quanto se está a perder com os principais comboios e as principais linhas em estado deplorável?

 

Quanto custaram as privatizações aceleradas, seguidas de desmantelamento, fecho ou transformação radical das empresas de bens e serviços especialmente valiosas, como a electricidade, o gás, o petróleo, os cimentos, a celulose, a rede energética, as telecomunicações e outras?

 

Quanto se ganhou e perdeu, quanto se está ainda a perder, quem ganhou e quem perdeu, com a venda das empresas e das redes energéticas, assim como com a das barragens, cujos negócios parece terem sido ruinosos para o erário público, sobretudo para os cidadãos, mas cujos valores aproximados são desconhecidos?

 

Quanto se tem perdido, quem tem sido prejudicado, quanto perdem e pagam os cidadãos com as greves e a desordem nos tribunais, com deslocações inúteis, dias perdidos no trabalho e no emprego, despesas efectuadas e causas não resolvidas? O que o Estado tem perdido e o que tem sido pago pelo cidadãos não são já muito superiores aos custos de um possível acordo salarial com os oficiais de justiça? 

 

E, finalmente, a pergunta do bilião de dólares: quanto pagaram até agora os contribuintes pelos desmandos do BES, do BPN, do Banif e do BPP? Quanto poderia ter sido evitado?

 

Sem respostas a estas e outras perguntas similares, Portugal será sempre uma sociedade refém e uma democracia hipotecada.

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Público, 13.5.2023

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1 Comments:

Blogger Monteiro said...

E pela Lei Barreto quem presta contas? Na minha Rua ainda lá está uma frase lapidar: Abaixo a Lei Barreto

14 de maio de 2023 às 03:44  

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