3.6.23

Grande Angular - A consciência tranquila

Por António Barreto

Ter “a consciência tranquila”! É um dos mais interessantes fenómenos da vida política, mas também de outras vidas, como por exemplo, a económica. Ter “a consciência tranquila” é uma fase obrigatória de qualquer processo que envolva erro ou pecado. É indispensável em qualquer ocorrência que inclua culpa ou insídia. 

 

Quando alguém, nomeadamente um político, é acusado do que quer que seja, desvio, fuga fiscal, cunha, erro, ocultação, roubo ou mentira, rapidamente aparece a público a justificar-se, depressa desmonta as acusações, procura explicações e encontra desculpas, umas mais críveis do que outras, terminando muitas vezes os seus esclarecimentos com a beata frase: “tenho a consciência tranquila”. 

 

Em geral, salvo raras excepções, mesmo muito raras, essa belíssima frase quer dizer que o suspeito, arguido ou acusado é culpado. É um par estranho: a consciência tranquila e a culpa! Em Portugal, infelizmente, não se pode dizer que as cadeias estejam cheias de consciências tranquilas! Pela simples razão de que os processos judiciais ou policiais raramente chegam ao fim, não se realizam, esperam, são transformados em megaprocessos, encontram-se em segredo de justiça ou simplesmente prescrevem. Mas se olharmos para os casos mais flagrantes, os que incluíram cadeia ou pulseira electrónica, os que passaram pelo termo de residência, os que se encontram em fase de busca internacional e mandato de captura e os que chegaram já à prescrição, é muito fácil verificar que praticamente todos incluíram a sacrossanta frase “estou de consciência tranquila”! Pode mesmo considerar-se que essa frase é a mais certeira admissão de responsabilidade sem confissão de culpa. A intenção é oposta, o resultado involuntário, mas quase nunca falha!

 

Licenciamentos duvidosos, autorizações discutíveis, adjudicações habilidosas e favorecimentos encapotados conduzem inevitavelmente ao testemunho público, por parte dos visados, de que a tranquilidade da sua consciência poderia ser a garantia de honestidade. Nomear amigos, contratar parentes, informar correligionários, denunciar pessoas à concorrência ou a embaixadas, encomendar estudos e pareceres a colegas, sabotar processos de decisão, manipular sorteios e divulgar segredos são tão comuns no nosso espaço público! Tão comuns quanto os seus responsáveis ou autores terem a “consciência tranquila”!

 

À falta aflitiva de justiça sucede, cada vez mais, o papel investigativo dos jornais e das televisões. Graças a este último, têm os cidadãos percebido e sentido que existe um mundo estranho feito de ilegitimidade e de abuso de poder, que geram, paradoxalmente, não a inquietação e o receio, mas a tranquilidade da consciência! Nas últimas semanas foi um autêntico festival. Primeiro, as nomeações e as demissões da TAP, eram, por si só, casos enormes. Mas depressa ficaram medonhos, por causa das ramificações e implicações, incluindo as famigeradas operações de privatização, nacionalização e reprivatização. Sem falar nas compras e vendas de aviões. Segundo, o caso SIS, que ganhou vida própria dada a gravidade da ocorrência e a atrocidade da acção política subsequente. Terceiro, a agora rejuvenescida operação Tutti Frutti, que envolve estranhas alianças entre partidos rivais e cumplicidade entre poder central e câmaras. Dois factores comuns a todas estas situações: o abuso de poder e a “consciência tranquila”!

 

Quase todos os envolvidos no agora famigerado caso TAP, incluindo praticamente todos os ministros e secretários de Estado, assessores e adjuntos, administradores e directores, deputados e altos funcionários, muitos dos que tiveram intervenção pública passaram por esse momento de verdade que é o da “consciência tranquila”. 

 

O mesmo se terá passado com o complexo e infindável processo de decisão sobre o futuro aeroporto de Lisboa, que já envolveu uma dezena de localizações e variantes, milhões de euros gastos em estudos definitivos, processos de adjudicação, expropriações, declarações de interesse público, preparação de construção de estradas e projectos de caminhos de ferro, portos, pontes e aeroportos propriamente ditos. Quando postos em causa, governantes, técnicos, estudiosos e consultores, praticamente todos tiveram o seu momento de honra: “tenho a consciência tranquila”!

 

Se formos um pouco mais atrás, a processos mais antigos e já quase íntimos que podemos tratar por tu, a sensação é a mesma. São designações familiares que usam os nomes dos arguidos, das operações policiais ou das empresas e instituições.  Vistos Gold, Marquês, Freeport, Lex, EDP, BES, BPN, TGV, Monte Branco, Casa Pia, E-Toupeira, Bragaparques, Tecnoforma, Luanda leaks, as PPP, Futebol leaks, vários presidentes de clubes, diversas SAD e algumas das câmaras municipais mais importantes do país: o rol é longo! São cerca de 1.000 os processos pendentes cuja resolução se arrasta muito lentamente ou simplesmente não avança. Quase sempre, cada vez que ocorre uma expressão pública, tivemos o prazer de ouvir manifestar-se a “consciência tranquila”.

 

É interessante e curioso notar que não se trata apenas de casos de corrupção e roubo. Conforme as ocorrências, há muito mais do que isso. Há sobretudo a sensação de que o uso do poder e da influência no nosso país está sujeito a regras e práticas vergonhosas que todos os dias negam os direitos do cidadão e a honradez do serviço público.

 

A maneira como muitos políticos usam o seu poder e as suas funções denota um espírito de predador sem remorsos. O modo como alguns altos funcionários e empresários exercem os seus cargos revela uma insuportável atitude: a de quem utiliza regras e poderes como se o espaço público fosse propriedade sua, reserva de caça ou trampolim para a notoriedade e a importância. Nem sempre estamos perante os clássicos procedimentos de roubo, desvio e ganho sem causa legítima. Tão usual quanto isso é o comportamento que se destina a aumentar poder e importância, influência e protagonismo. Favorecer grande potência e respectivas embaixadas nem sempre dá dinheiro e lucro, mas muitas vezes dá alavanca e ponto de apoio. Deixar abrir um Plano Director Municipal pode dar lucro, mas também reputação e pose. Empregar amigos e ocupar cargos é compensador. Nem tudo é vil dinheiro, mas tudo é sinistra importância.

 

Uma coisa é certa: a “consciência tranquila” de uns é a inquietação de todos nós. 

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Público, 3.6.2023

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