27.5.23

Grande Angular - Golpe de misericórdia

Por António Barreto

Discutem-se, com leviandade, as hipóteses de dissolução e de convocação de eleições antecipadas. São maus hábitos. Quando há crise, em Portugal, logo se pensa na dissolução. Além de ser um pensamento inadequado, é pouco frequente nos países democráticos. Nestes, quando atravessam crises, a dissolução é mesmo o último recurso, quando já não há governo possível nem solução parlamentar.

 

A decisão de dissolver um Parlamento e convocar eleições antecipadas pertence, nos países democráticos, ao Chefe de Estado, Presidente ou Monarca. Mas a iniciativa é do Governo ou do Parlamento. Portugal é, neste capítulo, país à parte, um dos muito raros, quase único, onde a iniciativa e a decisão pertencem a quem não governa nem legisla, isto é, ao Chefe de Estado. É mais uma especialidade de um regime inventado por juristas sofisticados.

 

Países há, como a Itália, onde a iniciativa e a decisão parecem pertencer ao Chefe de Estado, mas, na verdade, aquele age depois da tomada de posição do governo e do parlamento. Também há países, nomeadamente a França, onde o Chefe de Estado toma claramente a iniciativa e a decisão. Mas o chefe de Estado francês também é, para todos os efeitos políticos, chefe de governo.

 

É legítimo defender a utilização intensiva do poder presidencial de dissolução do Parlamento e de convocação de eleições antecipadas. Acontece que tal prerrogativa pode ser muito negativa para a estabilidade institucional, assim como pode ser danosa para a natureza do regime. Realmente, em regimes parlamentares, a decisão da dissolução e da convocação de eleições é assunto do governo e do Parlamento.

 

É difícil sublinhar a inspiração parlamentar do regime português. Na verdade, quase tudo se inclina sempre para reforçar o seu lado presidencialista. É pena. O carácter semipresidencialista é tipicamente nacional. Nem peixe, nem carne. Juridicamente sofisticado. Deliberadamente complexo. Inocentemente destinado a criar problemas, não a resolvê-los.

 

É notoriamente mais democrático um entendimento restritivo dos poderes de dissolução. Só em caso muito grave. Só em caso de ingovernabilidade. Sem cuidar de sondagens ou de alternativas. Sem pedir ao Presidente que encare as hipóteses de ajudar este ou aquele. Sem lhe dar a oportunidade de fazer o que mais lhe convém. Os exemplos que temos da história recente mostram como a dissolução pode ser vassoura de aprendiz ou ferramenta de feiticeiro. Nem uma nem outra parecem úteis. Para a convocação de eleições antecipadas, os argumentos essenciais são a maioria impossível ou esgotada, a impossibilidade de formar governo e de aprovar orçamento e a necessidade, sentida pelo governo, de refazer uma legitimidade. O resto, os sentimentos e as sensações do Presidente da República, deveriam ser evitados.

 

Há hoje uma crise política? Há. Há ministros incompetentes? Não é o que falta. Há governantes inexperientes? Muitos. Há fragilidade na coordenação governamental? Visível. Há oscilações programáticas e de orientação? Flagrantes. Há ministros imaturos desejosos de conspirar? Sabemos quem são. Tudo isto se resolve com meios tradicionais e soluções conhecidas. A remodelação pontual é feita para isso. As grandes remodelações servem grandes desígnios, nomeadamente o de começar de novo. A demissão do governo, a pedido do Primeiro ministro, a quem o Presidente da República solicita nova solução, é remédio usado em todo o mundo democrático.

 

Outros meios mais simples têm os mesmos efeitos, os de renovar e corrigir. Por exemplo, a apresentação ao Parlamento de novo programa de governo. Tal como o recurso à moção de confiança devidamente votada. Ou o uso da moção de censura, tão denegrida, mas tão útil. É interessante saber se a maioria ainda existe, se esta se mantém coesa, se a composição do governo pode ser ajustada, se os apoios parlamentares podem ser renovados, se ministros mais competentes podem ser chamados e se é conveniente afastar ministros moralmente fragilizados ou metidos em sarilhos. Há tantos meios constitucionais que devem ser utilizados antes da dissolução! As eleições antecipadas são ferramentas naturais, mas excepcionais. Dissolução, só em último caso. Não é por acaso que lhe chamam “bomba atómica”!

 

Em que medida uma dissolução resolveria um dos problemas actuais? Visivelmente, nada! O que é que a dissolução não resolve? A Justiça! Os serviços públicos! O SNS e as filas de espera. Os alunos sem aulas. As greves dos transportes públicos. As greves dos tribunais. Os adiamentos dos processos judiciais. O custo de vida e os preços dos alimentos. As migrações clandestinas. Os trabalhadores ilegais empilhados em dormitórios. Para tudo isto, há soluções conhecidas: novos ministros e dirigentes da administração, novos programas e orçamentos… Dissolução é que não!

 

Mesmo a questão do SIS, verdadeiramente demoníaca, pode ser resolvida de mil maneiras sem ser necessário recorrer ao poder de dissolução. Aliás, esta última, em si, nada resolveria. O caso do SIS necessita de várias respostas: demissões de membros do governo envolvidos, substituição de responsáveis, alteração da lei orgânica e redefinição de regras de envolvimento. A dissolução da Assembleia é que não leva a sítio nenhum.

 

Nas actuais circunstâncias, a dissolução, antes e em vez dos outros mecanismos, parece um capricho do Presidente, um cheirinho a sondagens, um favor, um jeito, um palpite, um receio, uma vaidade… A verdade é que não se deveria dissolver, nem antecipar eleições, com desígnios suspeitos, como por exemplo o de proporcionar maiorias aos amigos ou facilitar a vida a outro partido.

 

Antecipar eleições destina-se a pedir legitimidade e decisão ao eleitorado, não a pedir confirmação de desejos secretos do Presidente da República. Não se dissolve a pensar nas sondagens. Nem nos amigos a crescer ou nos inimigos a diminuir. Seria condenável dissolver com segundas intenções.

 

No momento presente, seria aliás inaceitável o PR dissolver um Parlamento e pôr um termo a uma legislatura no momento em que prossegue um dos mais complexos e controversos inquéritos parlamentares! Seria um gesto político que permitiria especulações legítimas. Favoritismo? Proteger um ministro? Favorecer um governo? Destruir um inquérito que poderia revelar factos inquietantes? Ao dissolver, o PR estaria a liquidar um inquérito, incluindo possíveis conclusões. Convocar eleições nestas condições é evidentemente suspeito e inquietante!

 

Dissolver o Parlamento e convocar eleições antecipadas é mais um golpe na democracia parlamentar.

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Público, 27.5.2023

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