5.8.23

Grande Angular - O Papa e nós

Por António Barreto

O carisma deste Papa é formidável. Procurem-se as qualidades que fazem dele um homem excepcionalmente popular e não é fácil encontrar o dom principal. Talvez seja a bondade. Tem evidentemente outros atributos, mas os outros Papas também tinham. Neste, há algo de diferente, de singular. É possível que seja também a disposição para a justiça social: as suas intervenções têm marcado seriamente o pontificado. Apesar da abstenção relativamente à ordenação das mulheres e ao casamento dos sacerdotes, a sua nota de progresso social é indelével. A sua aversão aos ídolos capitalistas e mercantis é também traço importante do seu carácter e do seu programa. Mas é o homem bom, irradiando generosidade e indulgência, que atrai os povos, os jovens e os fiéis. Essa parece ser a sua graça.

 

Não é adequado tirar conclusões seguras da observação desta Jornada relativamente à religiosidade dos portugueses. É possível que estejamos iludidos pela presença dos estrangeiros cujo grande número pode enganar. É também provável que a dimensão festiva, musical, teatral e lúdica atraia muita gente, sem que isso signifique uma consistente atitude religiosa. Mas é certo e seguro que as actividades religiosas e para-religiosas, mesmo as festivas, mostram um apetite e uma predisposição crescentes relativamente a formas diversas de espiritualidade.

 

Estaremos diante de um renascimento religioso, em moldes muito diferentes do passado? Haverá uma “nova Igreja” nascida nestas últimas décadas, feita de juventude, de festa, de responsabilidade juvenil e de um novo sentido de comunidade? Ou será uma Igreja cada vez mais pequena, mas mais militante, activista e empenhada? Por mais impressionante que esta seja, não é uma Jornada que esclarece.

 

Muito interessante e curioso é o facto de o entusiasmo favorável ao Papa contrastar com uma distância crescente dos portugueses relativamente à Igreja, aos rituais católicos, à comunhão com as comunidades cristãs e simplesmente ao culto religioso regular.

 

O que sabemos nós da religiosidade dos portugueses? O que se conhece realmente da sua prática religiosa? Pouco. Muito pouco. Dentro da Igreja, parece haver receio de estudar e conhecer. Fora da Igreja, há desinteresse. A verdade é que todos conhecemos frases feitas que traduzem o sentimento religioso de tantos. “Sou católico, mas não pratico”. “Há qualquer coisa, mas não sei se é Deus”. “Acredito que há alguém no princípio ou por cima, mas não sei quem é”. “Sou católico, mas não vou à Igreja!”. “Cá por mim, tenho uma relação directa com Deus, não preciso dos Padres para nada!”. “Gosto de Cristo, mas não gosto dos padres!”. “Sou crente, mas não vou à missa, nem me confesso!”. O anticlericalismo e a aversão à Igreja podem ser denominadores comuns a tantos ditos católicos portugueses.

 

Como não há estudos sérios e isentos, ou de qualquer outra espécie, o grau de ignorância é grande. Como as entidades estatísticas não querem ou não podem saber mais sobre as práticas religiosas, não sabemos realmente muita coisa importante que deveríamos saber. Tal aliás como com as questões raciais, em todos os aspectos ligados com a educação, a saúde, a cultura, o rendimento, a criminalidade e o comportamento eleitoral.

 

Raça e religião. Provavelmente também sexualidade. Ou ainda comportamentos familiares e domésticos. Não se pode perguntar. Não se deve perguntar. Não se quer perguntar. E muitos não querem responder. Assim é que desconhecemos o essencial da vários aspectos e diversas dimensões da nossa vida, da nossa sociedade.

 

Temos, aqui e acolá, informações laterais. Mas significativas. Sabemos que os casamentos estão em diminuição acelerada relativamente às uniões de facto e outras formas de conjugalidade ou de comunidade. Temos ainda informações fidedignas sobre os casamentos católicos em rápido declínio absoluto e relativo se comparados com os casamentos exclusivamente civis. Também sabemos que o número de baptizados é cada vez menor, não só porque há menos nascimentos, mas também porque as famílias dispensam o baptizado. É igualmente do conhecimento público o facto de a maioria dos nascimentos serem “fora do casamento”, isto é, resultado de uniões de facto, de maternidades monoparentais e de outras condições, mas não de casamentos católicos.

 

Estas informações não substituem as que não temos sobre vocações, ordenações, frequência de seminários, presença regular na missa, periodicidade de confissão e de comunhão e outros acontecimentos de carácter religioso. Sabe-se melhor, pelo contrário, sobre a prática educativa, isto é, o número de alunos e de escolas ligadas à Igreja: é muito considerável, sobretudo se pensarmos que se trata em geral de ensino pago, em comparação com a gratuitidade da escola pública. Por outro lado, é conhecido o facto de a maior parte da solidariedade social presencial ser obra da Igreja e das suas instituições. Nos bairros miseráveis, nos cantos e recantos onde vivem os “sem abrigo”, nos hospitais, nos asilos e nas prisões, a presença humana e solidária é assegurada quase exclusivamente por religiosos e pessoas ligadas à Igreja. É verdade que a democracia laica e a solidariedade social encontram respostas e argumentos nos direitos sociais, na Constituição e nas políticas públicas. Mas a humanidade exige a presença de pessoas e o seu sacrifico. Na dor e na doença, na fome e no sofrimento, é o religioso que está presente, não o funcionário ou o profissional.

 

Esta Jornada tem-se revelado um êxito muito especial. A popularidade e a alegria têm sido a regra. Portugal e os portugueses ficaram a ganhar. Apesar de se ter gasto de mais. Mau grado os poderes públicos se terem talvez empenhado excessivamente. E não obstante os políticos e as autoridades se terem aproveitado o mais possível da manifestação a fim de cuidarem das suas próprias reputações. Estes defeitos não chegam para pôr em causa a utilidade e o interesse da Jornada. Nem dão qualquer razão à brigada republicana, aos tractores da laicidade e a outros bolchevistas de choque que defendem que o Estado não deve ter qualquer relação com estas iniciativas religiosas.  Como também não é necessário invocar, quase obscenamente, os lucros monetários, o retorno turístico, o marketing internacional e o aumento de receitas…. Social, cultural e politicamente, a Jornada beneficiou o país. 

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Público, 5.8.2023

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