13.7.24

Grande Angular - Pare, Olhe, Não escute!

Por António Barreto

As últimas semanas têm sido intensas com os assuntos relativos à Justiça. Há momentos em que se pensa em pequena guerra civil. Em rivalidade corporativa ácida. Em luta institucional sem tréguas. Ou conflito político irreparável. É provável que todos estes epítetos sejam adequados. Até insuficientes. Certo é que, tal como os vulcões, há turbulência grave periódica. Por causa das relações entre corpos da Justiça, por ingerência dos governos nos processos, por tentativa dos magistrados e dos procuradores de influenciar a política, por acção dos sindicatos, por estas e outras razões, há quase quarenta anos que os episódios graves se sucedem. Há outros tantos anos que os termos de “crise da justiça” e “justiça em crise” fazem parte do vocabulário. A ponto de se tornarem lugares comuns. E realidades com as quais estamos condenados a viver.

 

A corrupção parece estar no centro de tudo. Mas é só aparência. Mesmo com a porta giratória “Política/Justiça” e com governantes arguidos, vigiados, presos e condenados, há sinais de algo bem mais importante e mais grave: são as condições de exercício do poder político, seja pelas autoridades democráticas e dos partidos, seja pelas autoridades judiciais. Entre as primeiras, não falta quem queira condicionar a justiça e estabelecer regras de imunidade e de impunidade para os seus gestos. Entre as segundas, crescem e multiplicam-se os que pretendem capturar a democracia, condicionar a vida política e construir para si próprios um estatuto de intangíveis. 

 

Esta luta e este enredo duram há muitos anos. Com ganhos ora de uns ora de outros. Infelizmente, nas actuais circunstâncias, qualquer optimismo relativamente às “reformas da justiça”, ainda possível há dez ou vinte anos, não tem hoje fundamento. Os métodos e os vícios de trabalho, a desconfiança, a sede de poder e a vontade de vingança fazem com que não se veja quem possa levar a cabo as tais reformas. Não se vê quem. Quem, pessoa. Quem, partidos. Quem, autoridade. Os entendimentos entre partidos, corpos judiciários e restantes protagonistas, incluindo académicos e advogados, deixaram de ser possíveis. Esperam-nos anos de resignação e submissão a uma má justiça, até que novas gerações, gradualmente, consigam construir os alicerces e as bases políticas, legais, institucionais e constitucionais para uma justiça decente. Até que os eleitores, os políticos e os magistrados se entendam quanto ao essencial papel da justiça para a liberdade e a democracia. Até que novas gerações consigam, peça a peça, lei a lei, instituição a instituição, método a método, fundar a justiça na democracia e garantir a democracia com a justiça. Podemos, evidentemente, começar já. Quanto mais cedo, melhor. Mas tenhamos a certeza de que tudo vai demorar muito tempo.

 

Na crise actual, a escuta telefónica ocupa um lugar primordial. Esta simples ferramenta de investigação ganhou uma dimensão dramática. Foi graças às escutas, à sua utilização longa e intensiva; à sua proliferação sem critério; ao seu uso arbitrário; à comercialização dos seus resultados; e às manobras institucionais de cópia, apagamento e distribuição, que bom número de processos surgiram nos tribunais, nas polícias, nas televisões e nos jornais.

 

Já tudo foi dito sobre as escutas. Curiosamente, quase toda a gente aceita a sua utilidade. O que se discute é a parte operacional. Quantas pessoas? Quanto tempo? Quem decide? Quem avaliza? Como se guardam? Escutam-se só as pessoas de quem se desconfia ou também terceiros? Escutam-se pessoas, por métodos de rastreio, logo se verá se vem alguma coisa? Ou escutam-se apenas pessoas com culpas? Escuta-se quem corrompe ou quem é corrompido? Escuta-se quem comete crimes, quem trafica droga, armamento e sexo, quem prepara terrorismo e quem navega na alta finança? 

 

Tudo isto se discute, inclusivamente os procedimentos destinados a preservar direitos. Com e sem aval de juiz. Com pequenos ou grandes prazos de validade. Com e sem rastreio de inocentes. Com duração de escuta de meses ou anos. Com períodos de conserva de registos durante anos. Toda a gente tem ideias sobre estes temas.

 

Só falta de facto discutir o mais importante: devem ou não as escutas ser feitas e autorizadas? De todos os métodos de investigação, as escutas telefónicas e similares (microfones escondidos em casa, no emprego e no carro, câmaras de filmar disfarçadas) estão certamente entre as que mais ferem os direitos do cidadão e as que mais contrariam um invisível pacto de lealdade que as democracias deveriam respeitar. É um dos meios de investigação mais violentos. Tal como buscas a domicílio sem mandato. Ou intrusão domiciliária. Ou violação da correspondência. Ou perseguição disfarçada. Ou tortura e interrogatório agressivo. Ou tomada de reféns para obrigar à confissão e à denúncia. Ou chantagem e ameaças contra familiares e amigos. Alguns destes métodos são permitidos legalmente, muitos são proibidos ou de tal modo controlados que quase estão proibidos. Mas as escutas são as que mais vezes são usadas e talvez as que permitem mais abusos.

 

É estranho que se trate das escutas como mera técnica para a qual é necessário um processo de salvaguarda. Mas o problema é que a escuta é uma violação de direitos. Pura e simplesmente. De direitos que deveriam ser respeitados. E de métodos que deveriam ser banidos. Como a tortura. A busca e a vigilância domiciliária. A violação de correspondência.

 

Aliás, não se sabe com rigor, nem sequer com uma qualquer aproximação, o que as escutas evitaram. Ataques de terrorismo desmontados? Em Nova Iorque, em Paris, em Londres, em Madrid, em Moscovo, em Israel, na Cisjordânia? Crimes prevenidos? Droga apreendida? Contrabando de armas dissuadido? Fraudes financeiras evitadas?

 

Quem defende as vantagens da escuta tem a obrigação de assumir as suas opiniões. De mostrar as vantagens do procedimento. De garantir que não se trata de direitos fundamentais. De mostrar como os traficantes, os terroristas e os bandidos necessitam das escutas para as suas acções e não têm meios mil vezes mais sofisticados para comunicar.

 

A escuta, a vigilância, a intrusão e a perseguição, legais e ilegais, são hoje métodos correntes e aceites nas sociedades, sobretudo nas ditaduras, mas também muito nas democracias. É necessário começarmos a pensar e a discutir as escutas como uma questão de direito fundamental e, não apenas como um processo de investigação. Proibir as escutas é dar uma ajuda à liberdade e aos direitos dos cidadãos.

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Público, 13.7.2024

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