26.10.24

Grande Angular - Lisboa sempre, Lisboa nunca

Por António Barreto

Lisboa é uma das mais belas cidades do mundo. Olhem para ela a partir da ponte do Tejo, da outra Banda, do Panteão, do Castelo de S. Jorge, de Santa Justa ou dos mais altos edifícios da cidade: o deslumbramento é incansável. Veja-se Lisboa a partir das ruas da Madragoa, de Belém, da beira rio e até da Baixa: o encanto é inconfundível. Esta Lisboa, que já foi e quase não é mais, está a desaparecer. Sem ordem nem ideia, sem plano nem cuidado. Lentamente, os lisboetas adaptam-se e habituam-se a tudo: ao lixo nas ruas, à erva dos passeios, à calçada levantada, aos buracos nas ruas, aos abrigos rodoviários desfeitos, aos edifícios em ruína deliberada, ao estacionamento em segunda fila, às filas de carros evitáveis e às filas inevitáveis de cidadãos diante dos serviços públicos. Os lisboetas habituaram-se aos monumentos em ruínas, às casas abandonadas, às fachadas históricas deformadas e à publicidade luminosa de parolo e pechisbeque. Os lisboetas habituaram-se ao desmazelo, à fealdade e à sujidade. Tal como se habituaram ao pobre, ao sem abrigo e ao pedinte. 

 

Pior do que tudo, os lisboetas habituaram-se à desigualdade, à miséria, à imigração explorada, aos trabalhadores estrangeiros ilegais, aos alojamentos imundos, aos bairros segregados e aos novos guetos étnicos. Lisboa tem hoje a mais, sem previsão nem ordem, turistas, imigrantes, ilegais, pobres, comerciantes e outras populações errantes. Lisboa e Portugal podiam ter tudo o que têm, e muito mais, se fosse melhor, se estivesse previsto, se houvesse políticas e regras.

 

De repente, por causa de um incidente desastrado e fatal, em que um agente da polícia matou um cidadão, os lisboetas acordaram para uma Lisboa difícil, segregada, desmazelada, ilegal, drogada, explorada e pronta para a violência.

 

Não. Ainda não. Lisboa não está a arder. Mas queima. O que há muito se receava, mas que era adiado, aconteceu. Desacatos, violência, vandalismo e repressão. Em meia dúzia de localidades de outros tantos concelhos. Todos na área metropolitana de Lisboa. Estragos, incêndios, feridos e um morto. Discute-se, como era de prever, a morte de cidadão com bala de polícia. Não se sabe ainda e não se saberá talvez nunca em que circunstâncias exactas. Legítima defesa? Violência desproporcionada? Repressão com violência desnecessária? Agressão de ódio? Provocação descarada?

 

Rapidamente, começou a ver-se em funcionamento a tenaz do irracional. De um lado, a culpa dos incidentes reside na polícia, no governo, nos brancos, no racismo, na direita, no capitalismo, no regime democrático, na desigualdade social, na pobreza, no desemprego e na extrema-direita. Do outro lado, a responsabilidade é dos bandidos, dos marginais, dos negros, dos imigrantes, dos drogados, dos ladrões, dos ilegais, das minorias, dos muçulmanos, da complacência das autoridades, da permissividade do regime e da covardia dos dirigentes políticos. E não faltaram uns políticos tolos a propor que se matem alguns…

 

E não se pense que se trata de notícias falsas e de boatos sem identidade. Não. Nos jornais e nas televisões, grande parte daqueles preconceitos são apresentados com palavreado académico e mais ou menos verniz, sempre com estatísticas de apoio.

 

Nesta tenaz de preconceito, as generalizações são quase a regra. Os portugueses são racistas. Os africanos são ladrões. Os muçulmanos são violentos. Os chineses são mesquinhos. Os indianos são manhosos. Os brasileiros são aldrabões. Os romenos são ciganos. E os ciganos são mentirosos. 

 

Estas visões do mundo são geralmente obstáculos à compreensão e ao diálogo. O que quer dizer que tornam difícil, às vezes impossível, qualquer tentativa de resolver problemas e pacificar situações de conflito. Não só porque o preconceito é ele próprio uma barreira ao diálogo e à negociação, mas também porque vem acompanhado de juízos de contexto que tornam incompreensível a realidade. E que desviam para abstracções políticas os esforços para tratar de casos reais. Mas sobretudo eliminam o sentido de responsabilidade pessoal e individual, um dos fundamentos da civilização. 

 

A irrupção de violência nos bairros periféricos de Lisboa tem, para uns, causas evidentes: são os imigrantes, os africanos e os muçulmanos, que vivem da segurança social e da droga, que se aproveitam da escola e da saúde pública, que recebem toda a espécie de subsídios e que se acham com todos os direitos. Para outros, as causas, também evidentes, são as políticas dos governos, o comportamento dos portugueses, o racismo dos brancos, as empresas capitalistas, os bairros sórdidos, o ambiente de opressão nas fábricas e as casas esquálidas.

 

Uns e outros dizem o mesmo: a culpa é do contexto. Do quadro geral. Da política. Da sociedade. Como é evidente, todas as circunstâncias, toda a herança cultural e todo o ambiente comunitário têm importância decisiva, ajudam os fenómenos sociais, influenciam os comportamentos. Mas não justificam as acções individuais, não explicam o crime, não desculpam o delito, não absolvem a infracção.

 

É verdade que o meio social, o ambiente, o quadro geral, a classe social, a comunidade, o bairro e a vizinhança ajudam a compreender fenómenos e acções. Nada pode ou deve ser feito pela política ou pela reforma social sem ter isso em conta. Mas nunca, de todo, nunca esse contexto pode desculpar o crime e justificar o ódio. Estes são acções do individuo e como tal devem ser avaliadas, julgadas, recompensadas ou castigadas. Nada substitui a responsabilidade individual. Quem mata. Quem pega fogo. Quem dispara. Quem rouba. Quem viola. Quem tortura. Quem mente. Sem responsabilidade individual, não há cidadania nem direitos humanos.

 

Se a responsabilidade individual é o imediato, o mais vasto, a prazo, é o tratamento das questões gerais que ficam para resolver. As políticas de imigração, por exemplo. Sem essa discussão e sem as regras a definir democraticamente, nada se resolverá nunca. Mas tenhamos consciência de que o debate está, actualmente, inquinado. Está mergulhado no irracional. Os seus protagonistas são quase sempre os fanáticos. Sejam os racistas residentes e os nacionalistas integristas. Sejam os racistas imigrantes ou os defensores das portas abertas e da destruição da comunidade. Entre defensores da integridade da nação pura e adeptos da dissolução da comunidade nacional, não há meio termo. A discussão e as soluções só serão possíveis fora do dilema dos fanáticos.

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Público, 26.10.2024

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