17.1.25

“SOPAS DE CARNE”






Por A. M. Galopim de Carvalho

Numa fria manhã de inverno, com 7º C, aqueçamo-nos, recordando o calor de um dia de Verão alentejano, com cerca de 40ºC.

Bom fim-de-semana.

Foi num dia quente e seco de Julho, nos finais dos anos 40 do século que passou, com o sol quase a pino, na Herdade das Cortiçadas, ali para os lados de São Sebastião da Giesteira. Eu, o meu irmão Mário e mais dois companheiros calcorreávamos os campos amarelecidos do restolho da última ceifa, nesse tempo, ainda feita a braços de homem e mulher, de foice numa mão e dedeiras de cana a proteger os dedos da outra mão.

Vencida uma suave colina, deparava-se-nos, na planura que se abria aos nossos olhos, a locomóvel fumegante, accionando a grande debulhadora de madeira e ferro, há algum tempo e à distância, anunciada pelo matraquear cadenciado daquela espécie de locomotiva do século XIX. Concebida para se deslocar de seara em seara, ano após ano, sempre no pino do calor, fazia a debulha do trigo de várias herdades e encharcava a camisa da dezena de homens que andavam com ela.

Era a grande azáfama à nossa frente, ruidosa, escaldante e poeirenta, lançando no ar nuvens de moínha amarelada que inflamava os olhos de quem os não protegesse com uns óculos rudimentares, próprios para esse trabalho. Enquanto uns homens iam alimentando, com molhos, a voracidade da máquina, outros iam empilhando os fardos de palha que dela saíam a um ritmo alheio ao seu cansaço.

Não longe desta cena, à sombra de uma velha azinheira, a cocaria era uma correnteza de panelinhas de barro aconchegadas ao brasido ali atamancado, entre pedras, com a lenha que havia à mão. Uma mulher, cuja tarefa era vigiar este cozinhado colectivo, ia dando, a cada panelinha e de vez em quando, a conveniente volta, operação que consistia em pegar-lhe pela asa e dar-lhe uma sacudidela rápida e certeira, fazendo com que o que estivesse por baixo passasse para cima e que o que estivesse por cima fizesse o invés. Estava ali, aferventando baixinho, quase pronto, à espera do jantar dos homens, ao apitar do meio-dia. A meio daquele alinhamento, destacava-se uma panelinha maior. Era a dela e do marido ali ao lado, na debulha.

- Ora então, bom dia! - Disse um dos meus companheiros, quando nos aproximámos, de olhos postos no cântaro encostado ao grosso tronco da árvore, fazendo adivinhar frescura, sob a única sombra ao nosso alcance.

- Bom dia é como quem diz. - Respondeu a mulher plena de bom humor e em jeito de bom acolhimento. - Já estamos quase na boa tarde.

Deu-nos água fresca com o delicioso sabor a barro e satisfez-nos a curiosidade no respeitante aquela cozinha ali improvisada no chão.

- Nós chamamos-lhe “cocaria”. Já no tempo do meu avô era assim que se dizia. Cada um traz a sua panelinha e o avio que quer ou pode. A maioria traz um naco de toucinho e outro de chouriço e, às vezes um pedacito de carne da salgadeira. Junta-lhes uma cabeça de nabo, uma batatita e uma ou outra verdura com que fazem, chama-lhes a gente, umas “sopas de carne”. Migam-lhes pão à medida da vontade que têm e, depois, alguns deles estendem-se por aí, à sombra, e dormem a sesta até que o ganhão os acorde para acabarem a jorna até o sol-pôr.

O resto da tarde ficámos a conviver e, até, a ajudar naquilo que pudemos. Montámos, ali mesmo, acampamento, ceámos do que tínhamos e passámos o serão a conversar com o trabalhador que ficou de guarda às máquinas. Quando demos por terminada a confraternização, o meu irmão comunicou:

- Amanhã vou à venda a São Sebastião da Giesteira comprar o que for preciso para fazermos sopas de carne. 

- E não te esqueças do raminho de hortelã. – Disse um dos companheiros, mas que o sono não me permitiu saber qual deles.

Na imagem (cuja autoria desconheço) vê-se, em primiro plano, a mulher que toma conta do "jantar" (no Alentejo, o jantar era a refeição do meio-dia) dos trabalhadores. Atrás dela a "aguadeira" com o cântaro de barro, numa mão, e o cocharro de cortiça, na outra.

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2 Comments:

Blogger Janita said...

Ler esta deliciosa crónica sobre o meu Alentejo rural do século passado, foi algo que me reconfortou a alma e aqueceu o coração.
Não vivi essas experiências, mas senti na pele a força do calor tórrido nas tardes alentejanas.
Grata, Sr. Professor Galopim de Carvalho!

17 de janeiro de 2025 às 17:53  
Blogger bea said...

Lembro tudo isso da máquina impiedosa e sôfrega comendo cereais sem conta. Meu pai então cheio de força a encher-lhe a bocarra, minha mãe de forquilha pronta a fazer um monte com o desperdício e eu com pouca arte atando os sacos que o homem, talvez o dono da máquina enchia com o milho que ela despejava. E todos nós envoltos numa nuvem de poeira sem fim que fazia uma comichão desgraçada e que só tínhamos tempo para sentir quando a insaciável parava.
Também sei desses tempos "ao fogão", as panelas enfileiradas.
O texto do professor trouxe-me essa época de lá tão atrás. Obrigada.

17 de janeiro de 2025 às 21:39  

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