Grande Angular - Democracia e boa educação
Por António Barreto
O Chega não é bem-educado. Nem quer ser. A sua aparente má-criação é uma escolha e um instinto. Ser grosseiro e garoto, por vezes racista e intolerante, outras vezes presunçoso e sempre machista, fazem parte do estilo retórico e dos atributos dos deputados do Chega. Uns são-no naturalmente, outros vão-se forjando à medida em que desempenham as suas funções. Os deputados do Chega são, uns, polidos e bem-educados; outros, são simplesmente ordinários. Mas todos, ou quase, utilizam o modo áspero porque é essa a escolha do partido. Enquanto não fazem totalmente parte do sistema, têm de se comportar como “troublemakers” (agitadores ou desordeiros).
Apesar desta evidência, há, entre os democratas bem-comportados, alinhados e cinzentões, uma onda de revolta contra os modos do Chega. Já se fala em proibições, expulsões do hemiciclo, suspensão de mandato e pagamento de multas. Além disso, tudo leva a crer que está em formação uma comissão, ou qualquer coisa parecida, mandatada para definir regras e elaborar códigos. A aprovação de Códigos de Conduta e de elencos do que se deve ou não deve dizer, do que se pode ou não pode dizer, está no espírito de muitas almas aprumadas e reverentes.
É de arrepiar esta espécie de inocência bem-pensante. Depois de cinquenta anos de democracia e de liberdade de imprensa, após três ou quatro décadas de Internet e de redes sociais, passadas que são dezenas de anos de explosão das liberdades públicas, ainda há quem pense que é possível e aconselhável elaborar códigos de comportamento e normas de boa educação! “Como ser um cavalheiro no Parlamento”, “Como se comportar numa assembleia democrática” e “Como ser um político bem-educado” são títulos de livros que esperam por nós!
Com estas ideias, teríamos de rever uma parte importante da nossa literatura. Muito que se escreveu desde meados do século XIX, até à implantação da ditadura, seria hoje condenado por blasfémia e retórica antidemocrática. Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz e Rafael Bordalo Pinheiro, entre tantos outros, seriam censurados e banidos da imprensa pelo vigilantes das polícias ou das Cortes.
Que se aspire a que os nossos representantes, nacionais ou autárquicos, pensem bem, falem melhor, saibam exprimir-se sem recorrer a lugares comuns e fujam das banalidades cruas e boçais, é legítimo. Que se pense que tudo isso depende de um código e de normas, para já não dizer de multas e castigos, já é do domínio do infantil onírico. Ou do despotismo.
Qualquer proposta de elaboração do que quer que seja tem de começar por resolver os primeiros problemas. Quem define os palavrões permitidos e os proibidos? Quem estabelece a lista dos pensamentos pecaminosos traduzidos em expressões verbais públicas? Quem define os valores morais, culturais e estéticos que presidem à elaboração do código de conduta? Quem define o que é o discurso de ódio? Quem enumera as expressões e os pensamentos capazes de traduzir qualquer tipo de ódio a proibir, racista, religioso, de género, sexual ou social? Quem define e quem aprova? Quem traça as fronteiras do interdito e do legítimo? Quem são esses novos Sacerdotes ou Comissários da democracia que estabelecem as linhas morais?
Quem define os conteúdos, as formas e as fronteiras de três das mais frequentes realidades da vida e do debate público, a mentira, o insulto e a calúnia? Quem é capaz de traçar linhas de definição para estes casos na vida política e parlamentar, recheada, como está, de confronto adversário e de afrontamento radical, aos quais nunca faltam a energia crua e a imaginação, com os seus meios excessivos?
Seria bom que, antes de iniciarem cogitações sobre estes temas, partidos e deputados pensassem duas vezes nas dificuldades em encontrar quem seja capaz de elaborar essas regras de modo independente, equidistante de todas as políticas, isento de qualquer condicionante e livre de qualquer dependência. Convém não esquecer que os que definiriam, vigiariam e aplicariam tais regras podem ser muito diversos segundo as suas próprias convicções, crenças, valores, origens sociais e outras. O que é malcriado aqui, não o é ali. O que é ódio para uns, não é para outros. São muito diversas as concepções de grosseiro, ordinário e insulto próprias de um académico, de um militar, de um trabalhador, de um capitalista, de um analfabeto, de um rural e de um citadino.
O que querem exactamente os bem-intencionados da democracia? Querem mesmo cuidar da qualidade do debate democrático? Ou querem sobretudo calar o Chega? Aliás, o que se pretende realmente? Um código de conduta e um regimento de retórica que valem para o Parlamento ou também para todos os outros órgãos políticos? E o que assim valeria para o debate parlamentar, condicionaria também os comícios, as entrevistas aos jornais e os programas de televisão? Um deputado poderia insultar um governante ou outro deputado na rua, no jornal e na televisão? E por que não na Assembleia?
Com certeza que convém, na Constituição e nos Regimentos, consagrar princípios genéricos como a cortesia, a boa educação, a urbanidade, a civilidade e a polidez de cavalheiros. Assim como o rigor nas contas e a precisão na análise. E esperar que o presidente do parlamento, com a sua perspicácia e a sua experiência, saiba dirigir e manter o recato e os bons costumes. Advertir o deputado, cortar o microfone, interromper a sessão ou mandar sair da sala são meios e instrumentos eficazes, visíveis e compreensíveis, que têm capacidade para ajudar a resolver problemas. Mais do que isso, só espíritos particularmente inocentes ou mal-intencionados seriam capazes de esperar que um qualquer Código Moral teria real eficácia. Pior ainda: quem espera por regras morais e normas de conduta espera, na verdade, poder impor uma forma de moral aos outros, aos deputados e aos que o não são.
Há deputados e governantes mal-educados, incultos e grosseiros? Há. Sempre houve. Umas vezes mais visíveis, outras mais recatados. Há deputados e governantes mentirosos, caluniadores, capazes de faltar às leis, com cadáveres no armário e com currículo de uso dos meios do Estado em benefício próprio ou dos seus amigos? Há. Sempre houve. Umas vezes em quantidades abundantes, outras mais moderadas. Para os primeiros casos, as soluções são conhecidas: o exemplo, a opinião pública e uma imprensa livre. Para os segundos, as soluções são também conhecidas: as leis e os tribunais. Em todos os casos, a opinião pública ajuda.
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Público, 22.2.2025
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