20.12.25

Grande Angular - Praga ou maldição

Por António Barreto

Todos os dias há mais um episódio. Uma dedução fiscal inesperada. Um emprego fácil e oportuno. Um desconto conveniente no IMI. Um financiamento europeu. Carro de serviço para as compras lá de casa. Empresa em nome da mulher. Acções em nome dos filhos. Quotas em nome dos sogros. Prédio em nome do marido. Assunção de custos pessoais por associação de inquilinos ou de proprietários. Filantropia louvável e imprevisível. Nomeações por amizade e alegada competência. Gasto por conveniência urgente de serviço. Dispensado de visto por interesse nacional. Ajuste directo por motivos de premência e utilidade pública. Demissão por restruturação de serviço ou mudança de nome do instituto. Ajudante ou conselheiro nomeado por confiança política. Director designado por necessidade pública absoluta. Vendas de acções e de quotas a familiares. Doações apressadas de bens. Empresas sem pessoal, mas com actividades lucrativas. Rendimentos não declarados ao abrigo de segredos comerciais. Avenças indevidas e luvas por consultas, durante o exercício de funções. Origem secreta de rendimentos por respeito à privacidade de terceiros. Pareceres feitos por um, assinados por outro e subscritos por outro ainda. Nomes de empréstimo em companhias. Dinheiro “vivo” ou líquido que não deixa traço. Presentes de casamento sem factura para filhos ou sobrinhos. Viagens pagas por entidades fictícias. Cartões de crédito por empresa interposta. Data de construção de edifício inventada por conveniência fiscal. Avenças disfarçadas contemporâneas de exercício de cargos públicos. Doações em numerário por estranhas razões e heranças familiares oportunas. Funções exclusivas emparelhadas com actividades sombrias. Rendimentos com título de despesas de função. Acesso à escola ou faculdade a título de quota de admissão por razões extraordinárias. Colaboração familiar em gabinetes de consultoria, em agências de comunicação e em comissões de avaliação. Actividade partidária em grupos de missão, de trabalho, de estudo ou de estratégia. Nomeações para “Observatórios” de tudo e coisa nenhuma. Remunerações em liquidez, em desconto fiscal ou em dedução contributiva. Autorizações de construção, reparação e restauro em regime de excepção diante do PDM. Alvará comercial inesperado e fora das regras públicas. Publicidade oficial em órgãos de comunicação. Legislação especial para regular os “vistos dourados”. Endereços de conveniência para aproveitar as ajudas de custo para certas funções. Viagens fantasma, deslocações de fantasia e itinerários assombrados que justifiquem despesas de função e ajudas de custo. Horas extraordinárias e muito imaginativas em serviços públicos para justificar gratificações indevidas. Vendas preparadas de património público. Privatizações maquilhadas e embelezadas. Concursos com fotografia de candidatos inevitáveis. Deslocações oficiais em forma de gratificação e recompensa.

 

É este o catálogo? Não. Longe disso. Só uma amostra do que se faz todos os dias. Dos mil e um passes legais, sempre legítimos, públicos, conhecidos, admitidos por funcionários, aceites pela opinião e pelos magistrados, que constituem o mais emaranhado tecido de legalidades e processos aceites ao serviço de interesses pessoais e de grupo, razoavelmente ilegítimos e muito enviesados. “Muito limpo nas suas porcarias”, dizia alguém a propósito de quem sabia como se fazia. Trabalho meticuloso e esmerado, quase nunca deixando “rabos de palha”. A nossa vida pública é em parte feita disso. De um rendilhado fabuloso de procedimentos e escapatórias, de alçapões e alavancas, sempre legais, sempre prontos para justificar ou fundamentar interesses. De um emaranhado tecido de truques e armadilhas capazes de tudo permitir e tudo encorajar, sem deixar vestígio de ilegalidade ou sombra de pecado.

 

É este tecido prodigioso, este labirinto mágico, que substitui a velha “cunha” portuguesa, ditosa glória da ditadura, mas vício inconveniente da democracia. Uma legislação abundante, tropical e farfalhuda, um código de procedimentos misterioso e labiríntico, protegem os autores e utilizadores destes dispositivos. O simples nome de família, o empenho, a palavrinha e o recado já não bastam nem chegam. Eram os que valiam no século passado. Noutros tempos. Em número, em montantes e em dimensão, os factos têm novas exigências. Daí, só a legalidade imaginativa e a legitimidade preparada permitirem a modernização destes gestos e actos. E a transparência, que se transformou em opaco biombo.

 

Aviões, construções, pontes, telefones, celulose, estaleiros, água, electricidade, barragens, gasolinas, petróleos e tanto mais serviram para negócio e garantia, para troca e rendimento. Foi preciso, até hoje, tratar de tudo com toda a legalidade e toda a minúcia de que só advogados são capazes. Para que tudo seja claro e transparente, à prova de fogo e de lei. 

 

Portugal é provavelmente o país da Europa com mais processos, arguições, pronúncias e prescrições de Primeiros-ministros, ministros, secretários de Estado, directores-gerais e presidentes de instituições públicas. Assim como de detenções a título preventivo ou de cumprimento de pena, por parte das mesmas personalidades. E também por processos de escutas, fugas de informação, denúncias na imprensa, averiguações, inquéritos discretos e investigações policiais e judiciárias a titulares de cargos públicos. E certamente com menos condenações. São defendidos por uma legislação complacente e adequada. São assessorados por exércitos de advogados e respectivos escritórios. São compreendidos por certos funcionários. São protegidos pelas lutas e divisões entre magistrados que tornam a justiça impotente e paralisante. São seguidos discretamente por polícias, procuradores e magistrados, de acordo com o partido, a loja, a igreja, a família e o clube. Como também podem ser injustamente acusados e investigados por curiosos magistrados. Em quase todos estes processos, quando se sabe alguma coisa, os políticos têm tendência a defender-se mal, tardiamente, a conta-gotas e com protestos de inocência ou perseguição. Mas sempre incapazes de esclarecer e informar. Reclamam inevitavelmente a sua “consciência tranquila”, sinal quase seguro de que aquela não o está.

 

É a praga do dinheiro que faz o poder. A maldição do poder que faz o dinheiro. Só a democracia nos livra de uma. Só a liberdade nos protege de outra. Mas é tão difícil!

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Público, 20.12.2025

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1 Comments:

Blogger opjj said...

Com esse cardápio nem V.Exa. escapa.
Conclusão o mundo é uma teia.
Problemas do berço de cada qual. Bem dizia o outro, " O Homem e a sua circunstância"
Cumps.

20 de dezembro de 2025 às 13:13  

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