Arroz de coelho
Por A. M. Galopim de Carvalho
O nosso arroz de coelho, preparado com a metade dianteira do animal, o “devant de lapin” no dizer dos franceses, nasceu em Paris, no início dos anos 60 do século que passou, no antigo Hotel Blanadet, 51, Rue Monge, no 5 ème arrondissement, em plena rive gauche, designação dada a esta zona na margem esquerda do Sena, então muito frequentada por artistas e intelectuais. Aí se situavam o Museum National d’Histoire Naturelle, o Collège de France, a École de Mines, a Sorbonne, a École Politechnique e outras instituições de ensino superior e de investigação científica onde estudavam e estagiavam uma dezena de portugueses, entre geólogos, físicos, biólogos e até um sociólogo, todos eles residentes no velho e simpático hotel. Concentrados no 6º andar, que um de nós baptizou de “Avenida das Tílias”, aí se viveu, por mais ou menos tempo, em apartamentos ou em quartos simples, consoante se tratasse de casal ou de pessoa só.
Muitas e muitas vezes, aos domingos, reuníamo-nos em longos e animados almoços, ora no nosso apartamento ora no dos Martinhos, os únicos com o espaço suficiente para sentar uma dezena de lusitanos, ávidos de falar a própria língua, ao fim de uma semana literal e, às vezes, penosamente francófona, saudosos de saborear qualquer coisa que nos trouxesse a casa e nos recompusesse para mais uma semana de Réstaurant Universitaire, de self-services ou de refeições comidas à pressa, à base baguettes, jambon, patées ou queijo Brie. Foi neste contexto que, um certo domingo, servimos aos nossos conterrâneos, colegas e vizinhos o dito e saboroso arroz de coelho.
Nessa altura, em que o franco francês rondava os seis escudos (o preço de um litro de gasolina), comprava-se no talho um coelho médio por sete a oito francos, com a curiosa particularidade de a metade dianteira, o devant, quase sempre rejeitado por uma clientela de viver mais desafogado, ser vendido aos clientes de menores posses, como era o nosso caso, por apenas um franco, e o dérrière, pelos restantes seis ou sete.
Com as cabeças, mãos, costelas e fressuras de quatro ou cinco coelhos comia-se, no dizer de todos, o melhor arroz do dito, um pouco ao jeito do sabor da cabidela perfumada com cominhos.
– Este manjar, - dizia o Miguel Ramos, um dos lusitanos, a chupar à mão, uma a uma, as finas costelinhas, – devia ser comido acompanhado de louvores à Natureza e à arte de quem o confeccionou.
Tais almoços, bem regados por bons tintos du Rhône e outros bem escolhidos, e pela sempre fresca, saborosa, perfumada e estaladiça baguette, prolongavam-se tarde fora, de mistura com muita conversa e animação, que crescia na razão inversa do nível do líquido nas respectivas bouteilles.
– Abre aí outra – dizia o António Ribeiro – que esta já disse o que tinha a dizer.
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