Um D. Quixote aqui !
Crónica publicada n'A Capital de 30 de Janeiro de 2005
Um D. Quixote aqui !
D. Quixote tem agora 400 anos certos. E uma professora da Universidade do Minho, Maria da Conceição Carrilho, resolveu que era a boa altura de escrever, a propósito do Cavaleiro da Triste Figura, um dos livros mais deliciosos que tenho lido ultimamente. Isto na óptica de quem (e somos milhões) anda afogado na complicada função de viver neste nosso tempo.
O livro, agora editado pela Campo das Letras, traz o título “Da Impossibilidade de Viver sem Ter Lido o D. Quixote”, eloquente enunciado da provocação constante que reside nas suas páginas. Provocação, entenda-se, em tom de sagaz paródia nutrida de cotejos com o texto de Cervantes. Provocação ao que somos, como somos e como estamos nas sociedades que habitamos e vamos reconstruindo dia a dia. Tudo como se a autora se tivesse deixado levar por uma brincadeira que lhe caíra nas mãos e que depois a seduziu ao ponto de a levar a sério: “ O projecto inicial deste livro era ser um ensaio académico sobre o D. Quixote de Cervantes. Mas só me apercebi da impossibilidade desta tarefa quando comecei a escrever e reparei que cada linha e cada página deste romance eram tão inspiradoras, que não cabiam nos limites de um ensaio universitário.”
Por exemplo, num dos capítulos, o tema é muitíssimo simples: “Porque é que a política acabou, a família acabou, e as razões de D. Quixote para tão misteriosos desaparecimentos. O nascimento do homem-champô e o fim da luta de classes. “ Assim mesmo, de enfiada, num alegre nonsense onde se misturam o ensaio e a crónica de costumes, a divagação vocabular de um qualquer romance light e o apuro de construção literária de uma mulher (“confesso que sou mulher, não é pecado, já sei que estão a par”) que dedica o seu tempo à investigação no âmbito da Literatura Comparada.
Há um fio romanesco de actualidade a entrelaçar os nós temáticos. Mas a trama e as conversas convocam amiúde Quixote e o seu fiel escudeiro, que entram e convivem com as personagens desta delirante divagação.
Fala-se “ da necessidade de estar deprimido, da maldição da net e da chatice de o mundo estar tão caduco”, diz-se porque é que já ninguém ri, elabora-se sobre o amor e o canibalismo e logo, num tranquilo diálogo com Sancho Pança, a autora-narradora divaga sobre o medo:
“O que acontece, então? É simples: começamos a viver apavorados com tudo. Agora nem sei dizer se fomos nós a exportar esta mania do medo, pois como somos um país pobre, pobrezito mesmo, não teríamos mais nada e esta doença propagou-se a velocidade estonteante.
Vive-se apavorado com tudo, é incrível, nem no tempo das guerras mais mortíferas, e o medo tem sete olhos, mas o homem não tem sete vidas, pois não?
- Ah, pois não, lá isso não. Se quer saber, senhora Dona Adèle, aquilo que mais me dói quando me ponho a escutar tudo o que dizem de mim é eu ser medroso. Mas há lá homem que o não seja, diga-me lá? ”
São páginas de quem aparenta nada levar a sério. (“Tudo no D. Quixote é uma brincadeira, a vida não tem sentido.”). Mentira. Oferecidos com uma singeleza desconcertante, estão ali retratos seriíssimos de toda a gente, o leitor incluído. Estamos ali todos - mais as nossas televisões e as nossas sondas espaciais e a nossa globalização - especados na luminosa estrada que é este livro. E temos Sancho, Quixote e Rocinante mirando-nos, incrédulos do que fizemos de 400 anos para, afinal, estarmos iguais a eles. Incrédulos mas reconfortados. Porque, como também se lê, “Cervantes, já em 1605, escreveu um livro onde diz que o mundo nunca foi melhor nem pior, mas como ele é.”
Dizem-me que Maria da Conceição Carrilho é uma jovem e que se estreia na edição com este livro. O que me faz desejar duas coisas: que mande imediatamente novo original ao editor, e que este mo remeta depressa, feito livro.
Carlos Pinto Coelho
Um D. Quixote aqui !
D. Quixote tem agora 400 anos certos. E uma professora da Universidade do Minho, Maria da Conceição Carrilho, resolveu que era a boa altura de escrever, a propósito do Cavaleiro da Triste Figura, um dos livros mais deliciosos que tenho lido ultimamente. Isto na óptica de quem (e somos milhões) anda afogado na complicada função de viver neste nosso tempo.
O livro, agora editado pela Campo das Letras, traz o título “Da Impossibilidade de Viver sem Ter Lido o D. Quixote”, eloquente enunciado da provocação constante que reside nas suas páginas. Provocação, entenda-se, em tom de sagaz paródia nutrida de cotejos com o texto de Cervantes. Provocação ao que somos, como somos e como estamos nas sociedades que habitamos e vamos reconstruindo dia a dia. Tudo como se a autora se tivesse deixado levar por uma brincadeira que lhe caíra nas mãos e que depois a seduziu ao ponto de a levar a sério: “ O projecto inicial deste livro era ser um ensaio académico sobre o D. Quixote de Cervantes. Mas só me apercebi da impossibilidade desta tarefa quando comecei a escrever e reparei que cada linha e cada página deste romance eram tão inspiradoras, que não cabiam nos limites de um ensaio universitário.”
Por exemplo, num dos capítulos, o tema é muitíssimo simples: “Porque é que a política acabou, a família acabou, e as razões de D. Quixote para tão misteriosos desaparecimentos. O nascimento do homem-champô e o fim da luta de classes. “ Assim mesmo, de enfiada, num alegre nonsense onde se misturam o ensaio e a crónica de costumes, a divagação vocabular de um qualquer romance light e o apuro de construção literária de uma mulher (“confesso que sou mulher, não é pecado, já sei que estão a par”) que dedica o seu tempo à investigação no âmbito da Literatura Comparada.
Há um fio romanesco de actualidade a entrelaçar os nós temáticos. Mas a trama e as conversas convocam amiúde Quixote e o seu fiel escudeiro, que entram e convivem com as personagens desta delirante divagação.
Fala-se “ da necessidade de estar deprimido, da maldição da net e da chatice de o mundo estar tão caduco”, diz-se porque é que já ninguém ri, elabora-se sobre o amor e o canibalismo e logo, num tranquilo diálogo com Sancho Pança, a autora-narradora divaga sobre o medo:
“O que acontece, então? É simples: começamos a viver apavorados com tudo. Agora nem sei dizer se fomos nós a exportar esta mania do medo, pois como somos um país pobre, pobrezito mesmo, não teríamos mais nada e esta doença propagou-se a velocidade estonteante.
Vive-se apavorado com tudo, é incrível, nem no tempo das guerras mais mortíferas, e o medo tem sete olhos, mas o homem não tem sete vidas, pois não?
- Ah, pois não, lá isso não. Se quer saber, senhora Dona Adèle, aquilo que mais me dói quando me ponho a escutar tudo o que dizem de mim é eu ser medroso. Mas há lá homem que o não seja, diga-me lá? ”
São páginas de quem aparenta nada levar a sério. (“Tudo no D. Quixote é uma brincadeira, a vida não tem sentido.”). Mentira. Oferecidos com uma singeleza desconcertante, estão ali retratos seriíssimos de toda a gente, o leitor incluído. Estamos ali todos - mais as nossas televisões e as nossas sondas espaciais e a nossa globalização - especados na luminosa estrada que é este livro. E temos Sancho, Quixote e Rocinante mirando-nos, incrédulos do que fizemos de 400 anos para, afinal, estarmos iguais a eles. Incrédulos mas reconfortados. Porque, como também se lê, “Cervantes, já em 1605, escreveu um livro onde diz que o mundo nunca foi melhor nem pior, mas como ele é.”
Dizem-me que Maria da Conceição Carrilho é uma jovem e que se estreia na edição com este livro. O que me faz desejar duas coisas: que mande imediatamente novo original ao editor, e que este mo remeta depressa, feito livro.
Carlos Pinto Coelho
Etiquetas: CPC
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C
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