«A Cremação do Poder Local»
A TRAGÉDIA das chamas que percorrem o país perante a impotência geral vai certamente destruir uma boa parte das nossas riquezas: o que seria desejável é que fosse a cremação do poder local tal como o conhecemos hoje e que constitui o cancro do sistema representativo criado pela 25 de Abril.
Estas pequenas questões – estado das florestas, sistemas de prevenção, corpos de bombeiros – deviam ser uma questão do poder local.
E algumas são: cada autarquia tem o seu corpo de bombeiros voluntários que constitui uma espécie de tropa especial, para desfiles e inaugurações, dos senhores presidentes.
A racionalidade do sistema – cada concelho com o seu corpo de bombeiros, voluntariado em vez de profissionalismo, subordinação hierárquica à autarquia que pode recusar o seu uso no concelho vizinho – está inteiramente por estudar.
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A CREMAÇÃO DO PODER LOCAL
J.L. Saldanha Sanches
A tragédia das chamas que percorrem o país perante a impotência geral vai certamente destruir uma boa parte das nossas riquezas: o que seria desejável é que fosse a cremação do poder local tal como o conhecemos hoje e que constitui o cancro do sistema representativo criado pela 25 de Abril.
Estas pequenas questões – estado das florestas, sistemas de prevenção, corpos de bombeiros – deviam ser uma questão do poder local.
E algumas são: cada autarquia tem o seu corpo de bombeiros voluntários que constitui uma espécie de tropa especial, para desfiles e inaugurações, dos senhores presidentes.
A racionalidade do sistema – cada concelho com o seu corpo de bombeiros, voluntariado em vez de profissionalismo, subordinação hierárquica à autarquia que pode recusar o seu uso no concelho vizinho – está inteiramente por estudar. Quanto custará às empresas em horas de trabalho perdidas e em desordem instalada a dispensa dos seus funcionários para irem combater os fogos?
Tudo isto dura há anos e anos e as indignações são apenas ocasionais.
A indústria dos fogos é um dos poucos sectores da economia portuguesa que não está em crise. De ano para ano tem revelado maior dinamismo e reduzido à impotência os esforços inconsequentes do poder central.
O sistema que temos e que torna a situação portuguesa a pior da união europeia a grande distância dos outros países existe porque há um sector do sistema político – o poder autárquico – que quer manter tudo como está.
Mais: não hesita em aproveitar os fogos para fazer chantagem com o poder central; ou mais rigorosamente, com os contribuintes. “Estamos disponíveis para incrementar o papel que nos é atribuído” afirmou o sr. Fernando Ruas “mas isso implica meios humanos e financeiros”. Seria difícil maior sinceridade.
Se querem a nossa ajuda para o combate aos fogos, dêem-nos mais dinheiro. Não, muito claro: num congresso de municípios em Abril de 2004 no Funchal para financiar a sua actividade de protecção civil pediam apenas mais transferências financeiras, um imposto sobre as “actividades de risco” (com receita integral para os municípios) e uma “taxa municipal sobre todos os produtos florestais”,
E mesmo assim a intervenção do Sr. Ruas foi uma das poucas aparições públicas de autarcas sobre a questão de fogos. Nero tocava a sua lira quando Roma ardia. Os autarcas dos concelhos em chamas prosseguem as suas campanhas eleitorais enquanto as florestas ardem. Isso das chamas não lhe diz respeito e delas falam o menos possível. O Governo que trate disso.
Começa a haver algum acordo de que os incêndios de verão não são um problema político nem um problema técnico.
São um problema cívico. A comunidade dos cidadãos não reage perante os incêndios nem individual nem comunitariamente pela mesma razão que não reage perante a corrupção ostensiva dos autarcas e está mesmo disposta a reeleger alguns.
Não reage colectivamente porque já deixou de acreditar no sistema político no seu todo, na política em suma. Não reage individualmente porque ainda espera do Estado a solução dos seus problemas específicos.
Não há qualquer sinal de revolta ou de reacção perante a ruína do sistema político ou o não funcionamento da justiça. Há apenas um mal estar colectivo e uma resignação difusa.
As teorias da conspiração (helicópteros a incendiar pinhais) ou a exigência do castigo exemplar dos incendiários (geralmente doentes mentais que deveriam passar todo o verão pelo menos em liberdade vigiada) são o contraponto da tolerância em relação a todos os comportamentos (foguetes e fogueiras em zonas arborizadas).
O debate sobre os incêndios é simultaneamente intenso e inteiramente inconclusivo: sabe-se que há uma indústria dos fogos mas há demasiados alvos para que isso adiante seja o que for. Sabe-se que a mudança de métodos de produção agrícola e excesso de proprietários absentistas que já mal sabem o que possuem mas tem nada se tem feito.
E depois há os representes das áreas rurais, que estão perto das populações e que conhecem os seus problemas. Que atravessam todos os dias áreas que vão arder nos próximos verões. Quando não estão em viajem de estudo – os nossos autarcas são muito estudiosos - no estrangeiro.
E que sobre os fogos nada têm a declarar. Absolutamente nada. A televisão mostra ministros e comandantes de bombeiros, mas raramente autarcas. Nem se sabe se estão ou não de férias.
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«Expresso» 27 Ago 05
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