30.3.06

Voltaire e os árbitros (*)

À PARTE o caso de Pierluigi Collina, que se tornou famoso por ser completamente careca, é seguro que os melhores árbitros são aqueles sobre os quais não reza a história - tanto a "grande" como a "pequena". Sou dos que cultivam, nas horas vagas, este ramo do conhecimento mais ou menos científico e que vão à bola para apreciar a qualidade dos jogadores, das equipas e das partidas - e não propriamente das arbitragens, salvo quando estas se tornam escandalosamente "voltairianas" e perturbam a "filosofia de jogo".

Isto reclama explicação. Voltaire, o impertinente escritor e filósofo setecentista, dizia: «Sou muito amante da verdade, mas em caso nenhum do martírio». Esta confissão serviu a Camilo José Cela, um dos meus três Camilos preferidos (os outros são Camilo Castelo Branco e o meu gato de aldeia, réplica a preto e branco do impagável Garfield), para escrever um dos seus Onze Contos de Futebol, intitulado O Holocausto. É aos árbitros que ele o dedica e merece figurar numa antologia sobre "O Apito Dourado".
Nota Cela que, para «o sempre muito conservador e sensato Voltaire», a verdade «tem um limite prático: a pele». Uma lição que os homens do apito deviam ter em conta dentro das quatro linhas. Porque, «se os árbitros fossem mais voltairianos e precavidos, conseguir-se-ia desterrar, de uma vez para sempre, o feio costume de enforcar árbitros de futebol (uso que tanto destoa do espírito olímpico de jogadores, massa associativa e adeptos em geral, casados ou solteiros)». É óbvio para Cela o que esta metáfora implica: «Está bem marcar penalties (…), mas quando, por assinalar penalties, se corre o notório risco de terminar enforcado, o árbitro deve abster-se de assinalar penalties, castigo que pode ser substituído pelo livre ou até pelo deixar jogar, conforme as circunstâncias».
Errar é humano, bem o sabemos. E a humanidade dos homens do apito não deve ser questionada. Mas há explicações bem menos prosaicas para erros de árbitros como o senhor Olegário Benquerença, que não sabemos se lê Voltaire ou Camilo José Cela. Há quem ache, por exemplo, que a televisão também "mente", quer através das imagens que emite, quer através dos "paineleiros" que nela comentam a bola. E até há quem diga que, mesmo sendo assinalado um penalty, a sua conversão em golo não é dado adquirido. Os soldados do senhor de La Palisse (que arruinaram, com os seus cânticos, a reputação do marechal defunto), não diriam melhor. Por mim, só desejo que arbitragens "voltairianas" não prejudiquem qualquer candidato ao título - e não arruinem a reputação da Liga.
(*) Crónica de Alfredo Barroso no «DN» de 29 Mar 06, aqui publicada com autorização do autor.

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