31.5.06

A grande bola (*)

AINDA a semana passada se podia ler numa revista de grande circulação que Cristóvão Colombo foi visto como herético por afirmar que a Terra é redonda. É um mito que persiste e que parece não esmorecer, apesar de ter sido dito e redito que se trata de um mito. Na realidade, o grande marinheiro não viu várias vezes a sua proposta de viagem recusada por não conseguir convencer os seus contemporâneos que a Terra é esférica e que, portanto, se poderia alcançar o Oriente navegando para ocidente. As repetidas recusas deveram-se ao facto de se conhecer já a ordem de grandeza do raio da Terra e, por isso, se pensar que a viagem para a Ásia rumando para poente era demasiado longa para ser possível com os meios de navegação da época. O resto da história conhece-se: Colombo encontrou pelo meio um continente desconhecido, o que o salvou de morte certa; julgou estar no Oriente e tornou-se um herói por descobrir o Novo Mundo.
Colombo recebido pelos Reis Católicos
A Europa culta sabia há muito que a Terra é uma grande bola. Os Gregos sabiam-no. Durante a Idade Média, os maiores sábios aceitavam a esfericidade da Terra. Antes e durante os Descobrimentos, tanto os matemáticos, como os pilotos e os promotores das grandes viagens assumiam como uma evidência que vivemos num gigantesco globo. A navegação astronómica, iniciada antes de Colombo, não seria possível sem esse conhecimento.

A partida de Colombo

O leitor interessado pode ler um magnífico livro de Jorge Buescu onde este assunto se encontra muito bem discutido e clarificado. O volume intitula-se «Da Falsificação dos Euros aos Pequenos Mundos» e foi publicado em 2003 pela Gradiva. Vale a pena lê-lo, e não só para esclarecer este problema.

Há mitos semelhantes que persistem. Diz-se, por exemplo, que Copérnico e Galileu reuniram provas irrefutáveis do movimento da Terra e que, apenas por teimosia, ignorância ou dogmatismo religioso essas provas foram negadas. Também não é verdade, embora a teimosia, a ignorância e o dogmatismo religioso fossem reais.

A sombra da Terra na Lua durante um eclipse lunar

Copérnico avançou um modelo cosmológico em que a Terra foi retirada do centro do Universo e colocada a orbitar o Sol. Quase um século depois, Galileu recolheu dados que refutavam o modelo de Ptolomeu e Aristóteles, mostrando que a Lua e o Sol não eram perfeitos e imutáveis, que o Universo não podia ter um centro único e que Vénus se encontrava umas vezes entre nós e o Sol e outras para lá deste. Mas esses dados não provavam irrefutavelmente que a Terra rodava nem que orbitava o Sol.

Depois do julgamento de Galileu de 1633, tão dramaticamente retratado na peça actualmente em cena no Teatro Aberto, em Lisboa, os dados começaram a acumular-se. Em 1638, o sábio italiano escreveu e fez publicar os «Discursos e demonstrações matemática sobre duas novas ciências», com que colocava a dinâmica em bases científicas e fornecia instrumentos de resposta às objecções ao movimento da Terra. Meio século depois, com os trabalhos de Isaac Newton, o sistema heliocêntrico apareceu coerentemente explicado pela nova física. Os homens de ciência deixaram de se questionar sobre o movimento da Terra, que tão difícil tinha sido aceitar.

A primeira prova directa de que o nosso globo se move, contudo, teve de esperar outro meio século. Foi o astrónomo James Bradley quem finalmente, em 1720, descobriu um fenómeno inesperado: a chamada aberração das estrelas, apenas explicável pelo movimento da Terra em torno do Sol. Mas a discussão dessa prova terá de esperar por uma nova crónica. Não demorará, certamente, meio século.

(*) Adaptado do «Expresso»