2.5.06

Os corpos flutuantes (*)

A PEÇA «Galileu», de Bertolt Brecht, em estreia no Teatro Aberto, em Lisboa, inclui muitas referências a episódios marcantes da história da ciência. Centra-se na condenação de Galileu pela Inquisição, mas alude a outras polémicas em que o físico italiano se envolveu ao longo da vida.

Um dos episódios menos conhecidos, mas nem por isso menos importante, foi um debate a propósito dos corpos flutuantes. Na altura já se conhecia o essencial, explicado há muito por Arquimedes (287–212 a.C.) e expresso no princípio que se aprende ainda hoje na escola: qualquer corpo mergulhado num líquido recebe da parte deste um impulso de baixo para cima igual ao peso do volume de líquido deslocado. A flutuação é pois decidida pelo equilíbrio entre o peso do líquido deslocado e o peso do objecto. Posteriormente, este princípio foi estendido a qualquer fluido. É ele que explica, por exemplo, o levantamento de um balão.
Arquimedes tinha resolvido um problema que Aristóteles (384–322 a.C.), que vivera um século antes, não tinha conseguido solucionar. Dizia este último que os corpos colocados sobre água conseguem ou não penetrá-la conforme consigam ou não «cindir a continuidade do líquido».
A autoridade de Aristóteles era tanta que os seus escritos continuavam a ser esgrimidos em discussões científicas. Um desses debates surgiu a propósito do carácter do gelo. Dissera Vincenzio di Grazia, professor na Universidade de Pisa, que o gelo era «água condensada», ao que Galileo respondera que tal não podia ser verdade pois o gelo flutuava na água, pelo que teria de ser «água rarefeita».
Di Grazia socorreu-se de Aristóteles e retorquiu que o gelo flutuava porque era largo e não conseguia cindir a água. Galileu retorquiu com um argumento que poderia ter sido esgrimido no tempo de Aristóteles. Explicou que a resistência à cisão da água não explicava nada: colocando um pedaço largo de gelo no fundo de uma tina e largando-o, ele vem ao de cima, o que quer dizer que é capaz de cindir a água. A explicação não poderia pois estar na resistência da água à cisão. É um argumento notável e é curioso que resulta de uma observação comum, sendo pois muito conceptual e retórico.
Brecht coloca Galileo a fazer a experiência. Na encenação moderna do Teatro Aberto, uma projecção vídeo torna visível aos espectadores uma imagem da tina que está no palco.

Para reforçar que não é a forma dos objectos que causa o seu afundamento, coloca depois uma agulha metálica a flutuar, o que se consegue fazer desde que ela esteja seca e seja colocada cuidadosamente sobre a água. Mostra essa experiência que objectos pontiagudos, portanto propensos a «cindir a água» podem flutuar.

O dramaturgo força aqui um pouco a verdade histórica, pois esse argumento pretendia pôr em causa Arquimedes e foi arremessado por um adversário de Galileu, o académico florentino Ludovico delle Colombe. O enigma apenas pode ser resolvido conhecendo uma propriedade dos líquidos chamada «tensão superficial» e que consiste na sua tendência a encontrar uma superfície mínima, esticando-a como se esta fosse uma membrana elástica. A resposta de Galileu, que não conhecia esta propriedade, foi magistral: relembrou que a agulha deformava a superfície e deslocava pois um volume de líquido superior ao dela própria. Como resultado, o princípio de Arquimedes continuava em acção: o maior volume deslocado era suficiente para fazer flutuar esse corpo metálico. Tratava-se de uma especulação que viria a ser ultrapassada, mas que tinha mais fundamento do que os argumentos dos seus opositores. É bom ver Galileu a pensar.

(*) Crónica adaptada do «EXPRESSO»