Não passem palavra! (*)
(**)
UMA MANHÃ, alguns meses depois do que acabei de contar (e quando, após muita insistência da minha parte, mais alguns chefes passaram a usufruir do privilégio de ter e-mail...), recebi uma das muitas chamadas de SOS com que a Geronto-Teknika me brindava:
- Olhe lá, você, por acaso, sabe qual é a passa-palavra da nossa contabilista-chefe?
Quem assim se exprimia, aparecendo no meu telemóvel com os seus modos grosseiros e o seu vozeirão inconfundível, era o presunçoso e malcriado Dr. Granítico, um dos Directores-Gerais mais temidos da Geronto-Teknika, de que atrás falei.
Respondi-lhe que não sabia, mas que passaria lá pela empresa para tentar descobrir.
É preciso explicar aos leitores que a estranha expressão passa-palavra era a sua tradução livre de password – tal como Internet era, para ele, inter-rede, Homepage era Casa-da-página... e outras curiosidades semelhantes que só daquela cabeça é que poderiam brotar.
Mas voltando ao assunto: conforme ele explicou em seguida, o que o preocupava era a grande urgência em aceder ao computador da Dra. Gangrenata, a contabilista-chefe que se ausentara para o estrangeiro sem deixar qualquer contacto.
E foi assim que apareci na empresa ainda nessa tarde, onde fiquei a saber que o grande reboliço que se notava por todo o lado era motivado por uma auditoria que teria lugar no dia seguinte. Como facilmente se percebe, era absolutamente fundamental, antes disso, aceder aos dados do computador pessoal da Dra. Gangrenata.
- Eu sempre disse que isto de computadores só traz é problemas... – foi o desabafo do Arquitecto Quadrilíneo, quando me recebeu na portaria – cordialmente, mas sem esconder a preocupação que compartilhava com os colegas de empresa.
Não era a melhor altura para o contrariar (tanto mais que eu bem sabia que, para ele, até uma máquina-de-calcular era uma modernice perfeitamente dispensável - pelo que procurei abstrair-me dele e dos demais que diziam coisas semelhantes) e, uma vez chegado à Contabilidade, reparei que estava toda a gente com cara de enterro. Mas o certo é que eu já tinha tanto prestígio por aqueles lados que bastou um sorriso meu simulando confiança para que as pessoas presentes perdessem o ar abatido e se animassem – porventura antes do tempo...
Sentei-me então em frente ao computador em causa e comecei a fazer aquilo que é habitual nessas circunstâncias: procurar post-its amarelos – pois a maior parte das pessoas que escolhem passwords complicadas escrevem-nas neles e deixam-nas bem à vista...
Mas não encontrei nada.
Longe de ficar desanimado, passei então à segunda fase, experimentando o invariável «1-2-3-4», os nomes dela (o próprio e o apelido) e o número mecanográfico... mas o certo é que não tive mais sorte.
Deixei para o fim a data de nascimento, porque há várias hipóteses: o velho formato (dia-mês-ano), o novo (ano-mês-dia) e ainda o americano (mês-dia-ano).
O Serviço de Pessoal deu-me a informação correspondente, e comecei a fazer tentativas, cada vez mais nervoso à medida que elas se iam gorando.
E foi nessa altura que o Sr. Lombriga, um daqueles brincalhões que há em todas as empresas, se saiu com esta:
- Olhe lá, que data de nascimento é que você está a meter aí?
- É a que está nesta fotocópia do Bilhete de Identidade dela, 17 de Novembro de 1947 – respondi, sem perceber a razão da pergunta.
- Então a marota sempre nasceu em 1947?! Eu bem desconfiava! Sabe que ela diz a toda a gente que é dez anos mais nova?
Sorri, e fiz então mais uma tentativa com a data de 1957. Então não é que a vaidosa da doutora Gangrenata até tentara enganar o seu próprio computador?!
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(*) Este texto foi escrito para o livro «Jeremias dá uma mãozinha» mas acabou por não ser incluído.
(**) O cartoon foi enviado por JMF
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