8.9.06

Crimes Helvéticos

NA MÍTICA Suiça de Guilherme Tell e do Monte Branco, do relógio de cuco e das vacas leiteiras, do chocolate Nestlé e do canivete multiforme, da indústria farmacêutica e do segredo bancário, da guarda privada do Papa e da eterna neutralidade, também há contos negros, crimes atrozes, personagens perversos e velhos «gargântuas», com uma sede e um apetite gigantescos, que se banqueteiam com ementas de fazer inveja a Pepe Carvalho e ao seu criador, Manuel Vázquez Montalban, que morreu há três anos.

Em 1976, Jean Ziegler denunciou Uma Suiça acima de qualquer suspeita, velho refúgio de capitais em fuga, a coberto do sigilo bancário e de contas numeradas, com os banqueiros a fazerem-se passar por pacíficos filantropos, sob o signo da Cruz Vermelha, da rentabilidade e da paz. A Paz Insuportável que John Le Carré descreveu, em 1991, na magnífica narrativa sobre um general do Exército helvético, Jean-Louis Jeanmaire, «que se fartara até à ponta dos cabelos de ser suíço» e que se tornara espião a soldo da URSS. Denunciado como «traidor do século», foi condenado a 18 anos de cadeia em 1977, aos 67 anos de idade. Sobreviveu, todavia, à pena de prisão, para contar a história: a de um espião que, conforme constata John Le Carré, saberia bem pouco para trair tanto.

Mas os tais crimes atrozes, personagens perversos e banquetes «gargantuescos», nesse «recanto da Europa Central primitivo e provinciano», ninguém os terá ficcionado melhor do que o suíço Friederich Dürrenmatt (1921-1990) nas suas magníficas novelas policiais. Todas as que li se desenrolam num pequeno país que «despolitizou a política» e que, «ao entrar no grande comércio, saiu da História». Um país varrido por um vento maléfico, seco e mórbido, o «Föhn», frequente no Norte dos Alpes, «que causa dores de cabeça, suicídios, divórcios, acidentes de trânsito e outras violências», como o escritor salienta em Justiz (Justiça), publicado há exactamente vinte anos e agora reeditado em língua francesa. Um vento como o suão, que fustiga os perseguidos pela justiça, sejam eles culpados ou inocentes, nas extraordinárias novelas de Friedrich Dürrenmatt.

Que eu saiba, a única à venda em língua portuguesa é a primeira (1951): O Juiz e o seu Carrasco (ASA de bolso). A concisão da escrita, a intensidade da intriga, a moral ambígua dos personagens culminam em duas cenas de antologia: o funeral do tenente da polícia e o banquete, farto e suicida, em que o inspector Bärlach desmascara o assassino que lhe serviu de carrasco. Já Die Panne (A Pane), é uma pequena obra-prima do humor negro. Durante um banquete «gargantuesco», quatro octogenários reformados – um juiz, um procurador, um advogado e um estalajadeiro – simulam, como se fosse um jogo, um julgamento no qual vão tecendo a teia em que se enreda um inocente (?) comerciante de tecidos. O génio do grande dramaturgo que foi Dürrenmatt (A Visita da Velha Senhora é a peça mais célebre) vai de par com o enorme talento do escritor (mais do que) policial. Os crimes helvéticos de Dürrenmatt mereciam mais edições em língua portuguesa.

«DN» de 1 Set 06

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1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

É verdade que Dürrenmatt faz falta a quem o não conheça e foi óptima a lembrança de A. Barroso aqui. Apenas uma nota de complemento - "Die Panne" foi traduzida para o português e editada em Portugal na saudosa Colecção Três Abelhas.

9 de setembro de 2006 às 03:12  

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