11.9.06

O OURO DE O’NEILL (*)

ALEXANDRE O’Neill foi-se embora, morreu, fez há dias vinte anos. Mas a poesia e a prosa que escreveu ficaram, ainda cá estão, vivinhas da costa. Uma evidência, em duas frases feitas que tresandam a banalidade. E logo escritas a respeito dele, que jamais deu tréguas ao lugar-comum. Se pegava em algum, era para lhe torcer o pescoço, vibrar-lhe uma grande marretada e lançá-lo pelas ruas da amargura, se não com muito humor, com suprema ironia. Ele próprio reconheceu, em O Diabo que vos carregue (1982), «colocar a tónica num certo aspecto subversivo, desconstrutor da poesia que venho conseguindo desfazer». Acreditava mesmo «na existência do Diabo» e era – ou, pelo menos, confessa que chegou a ser – «um Diabo raisonneur, trocista, sarcástico, demolidor».
Quase sempre «recalcou o lírico que lhe assomava à lágrima», como escreveu no Retrato (sem boné) de Mário-Henrique Leiria, talvez revendo-se na frase. Embora tenha «tropeçado de ternura» em Um Adeus Português, belíssimo poema que se lhe agarrou à figura como lapa à rocha. As circunstâncias em que o escreveu, embora atenuantes, não o isentam de culpa. Confessa, em A história de um poema, que estava a sofrer «pressões inacreditáveis» por parte da família para não «ir atrás da francesa», a sua querida amiga Nora Mitrani, que o desafiara a «ir ter com ela a Paris, onde vivia». Chegaram ao ponto de meter uma cunha à PIDE, onde O’Neill foi interrogado pelo subinspector Seixas, em «linguagem descomedida», ficando sem passaporte por muitos e maus anos.
Extraordinário é que um verme, como este Seixas, tenha entrado a rastejar para um rodapé da grande poesia portuguesa. Mas foi assim que O’Neill escreveu o poema, alimentado por «uma raiva e um amor desmesurados, quer dizer, adolescentes». Poema que, «ingénuo como é, tem realmente a força do nojo e do desespero combinados com um derrame/contenção sentimental» que – diz ele – não mais igualou. O que é igual ao litro, se lermos e relermos as admiráveis páginas de poesia e prosa que foi escrevendo pela vida fora e que resistem pela morte dentro. A escrita de O’Neill é uma inesgotável mina de ouro a céu aberto. Mais do que exegetas e mediadores, reclama garimpeiros e exploradores da boa Literatura, para gozo dos sentidos e proveito do espírito.

«Lede tudo, sobretudo as obras sobre as quais haveis lido tudo», aconselhava ele enquanto fustigava «a bem-pensância nacional, sempre á procura de tralha para mobilar e decorar a sua cabeçorra». O’Neill repudiava a «ideia de que escrever é uma actividade chique e mobiladora». E depois? A resposta, lá do fundo dos séculos (1833) e traduzida por ele, dava-a Giovanni Gioachino Belli, um dos poetas preferidos: «Depois o ofício, o jejum, a trabalheira, / a pensão a pagar, as prisões, o governo, / o hospital, as dívidas, a crica, / o sol no verão, a neve no Inverno…/ E por último – e que Deus nos abençoe! – vem a morte e acaba no inferno». Sem estátua do comendador, façam favor!

(*) Crónica de Alfredo Barroso no «DN» de 8 Set 06 (não está online), aqui transcrita com sua autorização.

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