17.10.06

O meu ditador é melhor que o teu (*)

VAI ENCAPELADA a polémica sobre a inclusão, ou não, numa lista exemplificativa de 200 possíveis "grandes portugueses" do nome de Oliveira Salazar, o homem que "hesitou em ser padre, hesitou em ser político, e até hesitou em ser ditador", segundo declarações do seu amigo de Coimbra, o cardeal Cerejeira, reportadas por um diplomata francês.

O concurso popular em questão não é um concurso de eleição por lista. Qualquer escritor pode votar no seu crítico favorito, qualquer regionalista tem a iniciativa de votar no seu santo ou no seu herói local de estimação. Tanto se pode eleger um futebolista como um pós-graduado no MIT para chefe dos nibelungos. As possibilidades são assim quase infinitas. Num país como Portugal uma lista exemplificativa de 200 nomes será sempre escassa tal é a variedade de naipes a ter em conta. Tanto pode ganhar Amália Rodrigues como Eusébio e estarmos a fazer uma grande injustiça à Severa e ao Pinga que não deixaram nem sons nem imagens para a posteridade. Estamos perante um concurso televisivo destinado ao entretenimento popular com especial componente histórica. O da RTP tem ainda o mérito de trazer de volta o rosto e o profissionalismo de Maria Elisa.

Seria assim impossível a primeira lista sugerida pela produção do programa ser exaustiva. Que me recorde nela não figuravam D. Dinis, o rei-poeta da dinastia afonsina, o conde da Ericeira do primeiro choque industrial, Mouzinho da Silveira o grande reformador liberal do século XIX, nem mesmo António José de Almeida, um moderado presidente da I República, o único com direito a estátua na capital. Curiosamente os nossos intelectuais que vivem do direito à indignação não deram pela falta desses personagens.

Faltou porém o nome sonoro e próximo de Oliveira Salazar, e logo as carpideiras tomaram lugar no funeral. Tivesse uma televisão alemã, ou italiana, proposto por sua iniciativa os nomes não menos sonoros e próximos de Hitler e de Mussolini e provavelmente quase os mesmos estariam a rasgar as vestes e a arrancar os cabelos pela ousadia monstruosa que se apoderara dessa gente.

Dir-me-ão que esses dois ditadores são os crápulas de uma família de distintos autoritários como o marechal Pétain, o almirante Horthy, mesmo o galego Franco, e até o sul- -americano Getúlio Vargas. Todos estes têm um historiador que os compreende, um intelectual que os compara com os referidos monstros para lhes amaciar o aspecto, tornar civilizados uns, cristãos a maioria. Quando não basta bater nos ditadores derrotados militarmente com esforço e o sacrifício de outros povos, há sempre à mão um Lenine ou, de preferência, um Estaline, vencedores na sua época, mas hoje também mortos politicamente e sem ninguém que os defenda envergando casaca, mesmo que desgravatado. É claro que qualquer deles até podia ficar bem colocado numa votação similar nos respectivos países. A II Guerra Mundial e as suas consequências estão ainda bem perto na memória das gentes: na Inglaterra da mãe televisiva do programa (a BBC) ganhou Churchil, na França foi o general De Gaulle o mais votado, e na Alemanha foi Adenauer.

O fenómeno da confusão entre personalidade marcante e grande personalidade não é apenas apanágio dos portugueses, como não é exclusivo das nossas elites desconhecer que está perante um ditador. Ainda há poucos dias um juiz iraquiano que participava no tribunal que julga Saddam Hussein atestou, com a sua independência até aí reconhecida por quem o nomeara, que este não era um ditador! Não acham admirável semelhante atitude, se bem que errada, num país militarmente ocupado? E nem por isso nos deixa de fazer a maior impressão que um juiz iraquiano sentado em cima das baionetas que derrubaram Saddam não considere ditador um que qualquer analista reconheceria à distância pelas medidas se não pelo aspecto? Acham que a televisão pública iraquiana devia incluir o seu nome na lista ao lado de Nabucodunosor? E que tal o nome do general Vilela na Argentina ou de Pinochet no Chile?

Por mim tanto me faz que alguém esteja, ou não, na lista ao lado de Pina Manique, o primeiro responsável pela Casa Pia e pela repressão da viradeira em nome dos bons costumes. Eu voto Camões, como posso votar Antero de Quental. Ou noutro, ou noutra, que não pertencem ao coro dos 200 Grandes portugueses é o que não falta numa terra em que os querem pequenos.

(*) Crónica de José Medeiros Ferreira no «DN» de hoje, aqui transcrita com sua autorização.