26.11.06

Ainda o trono e a espada

QUEM, pelo final da tarde da passada quinta-feira, entrasse no Rossio pelos Restauradores, não se aperceberia de imediato de que algo de invulgar pudesse estar ali a acontecer. A rádio divulgara que os manifestantes usariam como ponto de concentração e apoio "um café daquela praça" e eu pensei, sem razão, no Nicola ou no Pic-Nic; afinal era do outro lado, na Suíça, conforme me disse um agente da PSP, já que, a olho nu e com todo o normal movimento de fim de tarde, eu dificilmente o viesse a descobrir sem saír do carro. Descendo para o Terreiro do Paço, alguns grupos, pontuados ou não por umas quantas fardas, pareciam integrados no protesto; mas o mesmo poderei dizer de um militar em uniforme que, no sentido contrário, subia a Rua das Portas de Santo Antão, rodeado por três ou quatro companheiros desfardados. Não é difícil transfigurar o Rossio. Mas o eufemístico "passeio do nosso desencanto" não o fez. Só que o falhanço não põe a virtude e, por isso, não iliba ninguém.
Dois comentários apenas.
O primeiro é o de que já se sabia que não é digestão fácil passar da "nação em armas", agigantada pelas exigências da guerra colonial, para umas forças armadas profissionais e com dimensão adequada às verdadeiras necessidades da afirmação e salvaguarda da soberania. Como o não foi absorver um milhão de retornados. Mas a ideia subjacente à atitude dos que reclamam os equipamentos mais sofisticados e caros, mas recusam a redução dos efectivos actuais, só iria perpetuar a autofagia (muito burocrática e nada militar) da instituição. E é um sonho inaceitável. Quer porque há muitos que o acham um pesadelo, quer porque governo algum o poderá pagar.
O segundo é que, se o nosso sindicalismo não foi, em regra, tocado pela graça da modernidade (de resto, ainda menos o foi o associativismo patronal), este para-sindicalismo castrense releva da antropologia cultural. Com a soberba a sugerir armas na mão e por entre os escombros da sua própria ineptidão, recusam, em linguagem de caserna, quaisquer "restrições, constitucionalmente previstas, ao exercício de alguns direitos e liberdades", enquanto acusam os governos de "não respeitarem o estatuto da condição militar" (de cuja Lei de Bases Gerais - art. 2º - extraí a citação anterior).
E já agora, para que não se invoque o 25 de Abril em vão, convém lembrar que, para o fazer, os militares de Abril tiveram de se impôr aos de Março. Houve, naturalmente, militares dos dois lados.
Publicado no «DN» de 26 Nov 06

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Aquela ideia da "manifestação que não é manifestação" é coisa de Menino Tonecas - não tem pés nem cabeça, e é uma esperteza-saloia profundamente cobarde.

Além do mais, é penoso ver militares a colocaram-se ao nível dos agentes da PSP encapuzados!

Ed

26 de novembro de 2006 às 19:02  
Anonymous Anónimo said...

Eu não conheço as verdadeiras razões para esta manifestação, nem as reivindicações dos militares.

Mas sabendo que do outro lado da "barricada" está o governo de um primeiro ministro arrogante e prepotente, que trata os portugueses como se fossem uma corja de ladrões, com a excepção, evidentemente, dos camaradas socialistas, que nunca viveram à nossa custa, que nunca roubaram os cofres do Estado em concursos públicos e outras oportunidades para meter a mão no saco das esmolas, quando me lembro da prosápia desta gente, que nos quer convencer de que possui uma indiscutível superioridade moral, mas a quem eu não comprava um carro em segunda mão, então, francamente falando, fico do lado dos militares.
Jorge Oliveira

26 de novembro de 2006 às 20:27  
Anonymous Anónimo said...

A MALTA DO 1-2-3


Neste caso há, fundamentalmente, três aspectos a analisar:

1-A ofensiva do Governo sobre "privilegiados" (já se sabe que, para ele, todos o somos - mas isso agora não interessa)

2-As reivindicações dos militares

3-A forma como reivindicam.

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Ora, é frequente acontecer, quando há conflitos, que A FORMA como alguém reclama a sua razão é de tal maneira desajustada que passa a constituir o cerne do problema.

É o que se passa aqui.

A infantilidade da forma usada para reivindicar ofusca a reivindicação propriamente dita.

Pior: dá uma imagem infantilizada dos reivindicantes que os prejudica imenso.

Pior ainda: eles não se apercebem disso...

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Resumindo:

Em relação ao «1-2-3» que acima refiro, o 3 ofusca o 2 e faz esquecer completamente o 1.

C.R.

26 de novembro de 2006 às 23:13  

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