20.11.06

O meu óvulo e o teu espermatozóide

"INFIDELIDADE CONSENTIDA" - foi assim que os bispos portugueses classificaram o recurso à procriação medicamente assistida (PMA) quando os espermatozóides ou os óvulos utilizados no processo não forem os do próprio casal. Para a Igreja, pelos vistos, para se ser infiel já não é preciso convocar um terceiro para a nossa cama. Basta um espermatozóide em meio hospitalar. Um mero e microscópico espermatozóide, que não tenha feito os sagrados votos do matrimónio. A gente ouve e não acredita.
Não é que a PMA não possa levantar - e levanta - graves problemas éticos, sobre os quais vale a pena reflectir. Para quem acredita que há vida no instante em que há fecundação, é evidente que a questão dos embriões excedentários não pode ser ignorada. Mas parece que a Igreja, em tudo o que está relacionado com a reprodução e a vida sexual, não consegue resistir a dar sempre um passo para além do razoável. Chamar "infidelidade consentida" ao desejo, tantas vezes desesperado, de um casal em ter filhos é um completo absurdo, que só pode fazer sentido dentro da cabeça dos bispos que esta semana se reuniram em Fátima.
Ora, o problema destas tiradas insensatas é que elas acabam por se voltar contra a própria Igreja, contaminando os bons argumentos que ela também tem, sobre esta e outras matérias. Ou seja, perante tais delírios, quem não for católico fervoroso acaba por fechar automaticamente os ouvidos ainda antes de um bispo começar a falar - a radicalização dos discursos é sempre um convite ao preconceito. E a verdade é que no espaço de três dias, durante uma única conferência episcopal, os bispos vieram para a praça pública dizer que não reconhecem ao Parlamento competência para legislar em matéria de aborto - um belo convite ao diálogo que atira imediatamente a Igreja para as velhas trincheiras de 1998 e tritura as declarações equilibradas de D. José Policarpo - e que a fidelidade entre um homem e uma mulher desceu ao nível do espermatozóide. Os bispos estiveram em Fátima mas o Espírito Santo, esse, ficou de fora.
Crónica de João Miguel Tavares no «DN» de 18 Nov 06 [PH]

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Um texto certeiro a 100%.

20 de novembro de 2006 às 21:24  
Anonymous Anónimo said...

Teremos de aturar, até ao fim dos tempos, as directivas acerca de quecas vindas daqueles que, profissionalmente, estão impedidos de as dar?!

Ed

20 de novembro de 2006 às 21:26  

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