O meu óvulo e o teu espermatozóide
"INFIDELIDADE CONSENTIDA" - foi assim que os bispos portugueses classificaram o recurso à procriação medicamente assistida (PMA) quando os espermatozóides ou os óvulos utilizados no processo não forem os do próprio casal. Para a Igreja, pelos vistos, para se ser infiel já não é preciso convocar um terceiro para a nossa cama. Basta um espermatozóide em meio hospitalar. Um mero e microscópico espermatozóide, que não tenha feito os sagrados votos do matrimónio. A gente ouve e não acredita.
Não é que a PMA não possa levantar - e levanta - graves problemas éticos, sobre os quais vale a pena reflectir. Para quem acredita que há vida no instante em que há fecundação, é evidente que a questão dos embriões excedentários não pode ser ignorada. Mas parece que a Igreja, em tudo o que está relacionado com a reprodução e a vida sexual, não consegue resistir a dar sempre um passo para além do razoável. Chamar "infidelidade consentida" ao desejo, tantas vezes desesperado, de um casal em ter filhos é um completo absurdo, que só pode fazer sentido dentro da cabeça dos bispos que esta semana se reuniram em Fátima.
Ora, o problema destas tiradas insensatas é que elas acabam por se voltar contra a própria Igreja, contaminando os bons argumentos que ela também tem, sobre esta e outras matérias. Ou seja, perante tais delírios, quem não for católico fervoroso acaba por fechar automaticamente os ouvidos ainda antes de um bispo começar a falar - a radicalização dos discursos é sempre um convite ao preconceito. E a verdade é que no espaço de três dias, durante uma única conferência episcopal, os bispos vieram para a praça pública dizer que não reconhecem ao Parlamento competência para legislar em matéria de aborto - um belo convite ao diálogo que atira imediatamente a Igreja para as velhas trincheiras de 1998 e tritura as declarações equilibradas de D. José Policarpo - e que a fidelidade entre um homem e uma mulher desceu ao nível do espermatozóide. Os bispos estiveram em Fátima mas o Espírito Santo, esse, ficou de fora.
Crónica de João Miguel Tavares no «DN» de 18 Nov 06 [PH]
2 Comments:
Um texto certeiro a 100%.
Teremos de aturar, até ao fim dos tempos, as directivas acerca de quecas vindas daqueles que, profissionalmente, estão impedidos de as dar?!
Ed
Enviar um comentário
<< Home