22.4.07

A DEMOCRACIA E A LUTA DELES

UMA RUSGA POLICIAL levou à detenção de trinta e um activistas de extrema-direita e à apreensão de um pequeno arsenal. Armas brancas e de fogo, todas proibidas porque pouco adequadas à troca de ideias. Um dos detidos ficou em prisão preventiva, três em prisão domiciliária e seis estão sujeitos a apresentação periódica. Na televisão, ainda se viu a carrinha que recolhia aos calabouços rodeada por manifestantes que gritavam "vivó Hitler". O episódio decorreu três dias antes de uma conferência internacional nacionalista (se assim me devo exprimir) e de um concerto ibérico nacionalista (idem), que trariam a Lisboa os eufóricos nibelungos de dez países europeus. Escrevo no sábado, pouco antes de uma conferência de imprensa, que suponho convocada pelo Partido Renovador Nacional.
Durante décadas, alguma Europa bem pensante encarou com bonomia as explosões iracundas do seu lumpen. As democracias são mais permeáveis ao remorso e gostam de manter o escrúpulo no combate a estes inimigos pragmáticos (que bem sabem não haver nada menos prático do que o escrúpulo e agem em conformidade). Entendia-se que o fenómeno teria exclusiva origem nas condições económicas, pelo que as políticas sociais dos países ricos resolveriam o problema, sem necessidade de sujeitar o Estado de direito a uma repressão indesejada. Afinal, o problema só deveria inquietar os mais pobres de entre os ricos, aqueles que não abundam em recursos para financiar tais políticas. Não foi, porém, assim. Desde logo porque, se a riqueza dos países europeus mais ricos é incomparavelmente maior do que a dos mais pobres, já a pobreza nuns e noutros é mais comparável. Depois, porque outros factores, como a vivência da II Guerra ou a dimensão e as condições de integração das comunidades imigrantes, mostraram pesar tanto como as carências das políticas sociais. E foi assim que, globalmente, as explosões purificadoras da raça irradiaram em sentido contrário: dos mais ricos para os mais pobres. Os últimos tempos dão sinal de que terá chegado a nossa vez.
Dei por isso num muro, em Sintra, onde os devotos da excelência da grei pintaram: "Viva o Hilter!" (não se sabendo se é um caso de dislexia mural ou se o nacionalismo embota a grafia das línguas estrangeiras). Depois da morte de um jovem cabo-verdiano no Bairro Alto e da manifestação do Martim Moniz, tornou-se visível que o problema se instalava também por cá. Há, pois, que enfrentá-lo. Como os outros países europeus o enfrentam. E, se possível, melhor do que alguns deles o têm feito.
As políticas sociais têm decerto o seu papel. Nem teremos de inventar muito, teremos é de pagá-las. O combate ideológico também. Mas, entretanto, há que perder o medo de fazer a distinção entre o que releva das liberdades de opinião e de expressão e o crime, puro e simples. Por isso, na sua aparente platitude, a fórmula do procurador-geral da República - "faremos cumprir a Constituição e a lei" - não podia ser mais correcta. Uns decibéis a mais na discussão entre marido e mulher são do foro privado do casal, mas a violência, verbal ou física, entre eles, já é punível - pouco importando que, nalguns casos, a imprecisão da fronteira dificulte o trabalho do julgador. A sociedade portuguesa já aceita isto. Do mesmo modo, pensar ou escrever que a nossa raça é superior, ou que o Mein Kampf é o último grito da verdade revelada, são apenas opiniões ignaras e idiotas; mas tentar impor-nos as alegrias de um Reich para mil anos, não pelo voto, mas pela propaganda insidiosa ou à facada, dá cadeia. É tão-só aquilo mesmo: fazer cumprir a Constituição e a lei.
Mas reconheçamos que esta operação policial não era fácil. Não no plano da legalidade, em que só havia que preencher os necessários requisitos legais para proceder às buscas. Mas no plano político. Porque se não tivesse tido resultados, tê-los-iam os protestos (para os quais tudo obedecera ao propósito de prejudicar uma conferência e um concerto). Assim, mesmo prevendo que esse será um argumento na conferência de imprensa de hoje, a prova da justeza da medida já está nas armas apreendidas.
«DN» de 22 Abr 07

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