15.5.07

MADELEINE MCCANN NUMA EDIÇÃO DA PENGUIN

Por João Miguel Tavares
É SEMPRE ASSIM quando um acontecimento destes toma conta dos telejornais: aparecem os profetas a perorar sobre a decadência da comunicação social, a perda da noção de interesse público, a obscena vitória do sensacionalismo. Afinal, como pode o rapto de uma miúda de quatro anos ocupar tanto tempo nos telejornais? Se só em 2006 desapareceram 31 crianças em Portugal, porquê esta histeria em torno de Madeleine McCann? Ou, para citar um texto de José Miguel Júdice no Público: como é possível que as televisões se esgotem a "descrever em directo os pormenores do drama familiar de Lagos" e ignorem sistematicamente a "tragédia cósmica do Darfur"?
Há aqui uma distinção, nada subtil, que convém fazer. Uma coisa é o interesse noticioso desta história. Outra, bem diferente, é a forma como ela é muitas vezes abordada na comunicação social. Não há dúvida que a avalanche de directos nas televisões é absurda, porque a maior parte das vezes o jornalista não tem qualquer dado relevante para oferecer. A pouca informação divulgada pela polícia sobre a investigação e a falta de fontes internas nos media resulta quase sempre num pastelão inóspito de palavreado, sem um pingo de novidade. E depois, falta imaginação: as reportagens sobre o caso nas televisões britânicas são muitíssimo melhores do que em Portugal, onde a principal preocupação é encher chouriços ao minuto.
Mas não é apenas sobre isto que os profetas se debruçam. O que eles dizem - e cito Pacheco Pereira na Sábado - é que "sempre que há um crime que envolva crianças se esfregam as mãos nas redacções à espera de ver as audiências saltar". Ora, isto é um absurdo, e a chave para o desmontar foi dada pelo próprio Pacheco Pereira num texto que escreveu sobre o livro de memórias de Jorge Silva Melo. Existe uma geração, que é a deles, imersa em referências culturais, perdida "no contínuo entre a arte e a vida", "claustrofóbica" e com manifestas dificuldades em lidar com a brutalidade do quotidiano e a irrupção do "povo". Esta gente tende a ver apenas the big picture ("a tragédia cósmica do Darfur") e desenvolve uma espécie de nojo pela conversa de café, porque - e volto a citá-lo - "tudo só existe na vida se existir na cultura".
Na tragédia da pequena inglesa estão inscritos os nossos medos mais íntimos e o eterno mistério do mal. É por isso que toca tão fundo em qualquer pessoa, mesmo que não o saiba verbalizar. Ora, esta é a matéria, triste e profunda, de que são feitos os grandes filmes, os grandes livros, as grandes obras de arte que inspiram Pereira e Júdice. Mas eles, e outros como eles, parecem incapazes de o perceber. É como se só se pudessem interessar pela tragédia de Madeleine McCann se ela viesse impressa em softcover, numa edição da Penguin. Quem sabe um dia.
«DN» de 15 Mai 07 - [PH]

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1 Comments:

Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

A QUESTÃO REFERIDA é tão velha como o aforismo «Longe da vista, longe do coração», e Eça abordou-a magistralmente, não só n' «O Mandarim», como na história das desgraças da vizinha - que impressionava mais o leitor da notícia do que a morte de 100.000 chineses num cataclismo qualquer.
Mas é mesmo assim, as nossas emoções estão muito dependentes de critérios de proximidade.
Veja-se um outro caso, o das reacções à tão falada denúncia de corrupção.
Porque é que qualquer pessoa aceita denunciar um carteirista (se o vir a roubar 10 euros), mas já não aceita denunciar um colega que prejudica (rouba...) inúmeros cidadãos anónimos em valores infinitamente superiores?
Porque, tendo de optar, o ser humano fica do lado de quem está mais próximo de si contra quem está mais longe. Parece paradoxal, mas o nosso cérebro funciona assim mesmo.
Pelo mesmo motivo, o sofrimento de uma única pessoa ou família, desde que próxima, assuma, para o cidadão comum, muito maior importância do que um milhão de sofredores distantes, estejam eles no Darfur, no Iraque, ou noutro lado qualquer.

15 de maio de 2007 às 22:54  

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