VIAGENS NA HISTÓRIA (*)
Por João Aguiar
NO MOMENTO EM QUE ESCREVO, anda muito falada a eleição presidencial. Por isso convido-vos a assistir a uma outra eleição, crucial, que se realizou no passado. Teremos de voltar a uma época bem chegada à da batalha de Aljubarrota, de que tratámos recentemente. O local, agora, é Coimbra. E os leitores atentos já terão percebido que se trata da eleição de D. João I, nas Cortes de 1385.
Não é a primeira vez que falo do assunto, mas, agora, vou centrar esta viagem histórica na intervenção que o Dr. João das Regras teve naquelas Cortes. Ou, para ser mais exacto, na sua intervenção tal como o cronista Fernão Lopes a descreveu; é impossível saber qual é a parte de João das Regras e qual a de Fernão Lopes, mas isso não nos interessa agora; o que pretendo é mostrar qual a concepção de poder que serviu de fundamento para a revolução de 1383 - 85.
Portanto, estamos em Coimbra, nas Cortes que vão decidir sobre o futuro do reino, cujo trono está vago — e dizer isto já é revolucionário, porque a filha do falecido rei, D. Beatriz, foi aclamada em vários lugares e porque estas Cortes decorrem da recusa em aceitar a sucessão dinástica normal e a regência da mãe da rainha, Leonor Teles.
João das Regras, ao tomar a palavra (segundo Fernão Lopes), diz várias coisas de importância capital. Não posso mencioná-las todas, limito-me a alguns pontos essenciais. O primeiro: contra a opinião de alguns, ele declara que aquelas Cortes têm suficiente poder representativo para deliberar. A dúvida estava no reduzido número de nobres e prelados presentes, pois o reino estava «deviso», ou seja, dividido (muitos nobres e eclesiásticos mantinham a fidelidade a D. Beatriz); ora, um dos argumentos que o orador usa é, a meu ver, notável: «aqui são juntos bem cinquenta procuradores de vilas e cidades do reino». Ou seja, a presença dos procuradores dos concelhos — o elemento mais «popular», digamos — chegava para dar às Cortes aquilo a que podemos chamar de poder soberano.
Poder para eleger um rei entre os vários herdeiros - eram eles o rei de Castela e a mulher, D. Beatriz, e ainda os dois filhos de D. Pedro I e Inês de Castro, os infantes D. João e D. Dinis. Significativamente, João das Regras não mencionou o mestre de Avis, que era o seu candidato; de facto, como bastardo de D. Pedro, não podia ser considerado herdeiro. E depois de enumerar os herdeiros, foi dizendo, caso a caso, por que razão não podiam receber a coroa portuguesa. A argumentação é longa — e extremamente hábil; retenhamos somente que, no caso dos filhos de Inês, um dos argumentos a que o orador deu mais força foi o facto de ambos terem entrado em Portugal em som de guerra, integrados no exército castelhano. Este não era, contudo, um argumento de peso à luz da mentalidade medieval; mas era-o à luz da nova mentalidade.
Porém, o que mais me impressiona, em toda esta cena, são as palavras que Fernão Lopes põe na boca de João das Regras, quando este fala com o mestre de Avis: «Senhor, eu hei assaz trabalhado por mostrar (…) que estes reinos são vagos de todo, e a eleição deles fica livremente ao povo» (…).
Não há dúvida: estamos em plena revolução. Uma afirmação deste teor seria muito mal aceite, por exemplo, durante o Estado Novo. E pensar que foi dita no século XIV…
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(*) Esta crónica, que o autor publicou no boletim «Tempo Livre» e hoje cedeu ao SORUMBÁTICO, aparece aqui no seguimento de uma pesquisa feita a propósito - quem diria! - das próximas eleições para a CML. Pretendia-se comentar o facto de João Soares estar mortinho por se candidatar a Presidente da Câmara - embora vá sempre dizendo que não está muito interessado... -, o mesmo tendo sucedido, nas Cortes de Coimbra aqui referidas, com outro João, o Mestre de Avis que, ao que consta, também se fez rogado...
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1 Comments:
E logo 4 Joões!
João Soares, João das Regras, D. João I e... João Aguiar!
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