3.6.07

CRÓNICA DE ALFA

Por Nuno Brederode Santos
AO SR. ALFA SOBEJAM AS QUALIDADES de um cidadão cumpridor. De facto, até lhe sobram as bastantes para um são empenhamento na República.
Contudo, raiava o seu dia profissional de pequeno empresário por conta própria quando a directora da agência do banco onde a empresa tem conta lhe telefonou a pedir conversa urgente. Alfa partiu para o banco, onde lhe foi comunicado ter a conta penhorada. De pasmo em pasmo perguntou, até saber que por ordem da Segurança Social. Só que Alfa não fora notificado de problema algum e o banco nada sabia de razões.
Pensando nos trabalhadores e fornecedores a quem passara cheques (era fim do mês), Alfa convoca o contabilista. Este acede ao sítio da Segurança Social e encontra as alegadas dívidas. Depois, já com o dia a cair, junta laboriosamente os comprovativos dos pagamentos respectivos e arrancam para a Segurança Social. Mas no fim da bicha em que se acolhem estava um balcão que não tinha soluções.
Alfa dorme mal. Vexado, não deixa de pensar nos muitos que o estariam culpando de cheque sem provisão. De manhã, quem mora nele já não é o pequeno empresário por conta própria que nada conseguiu resolver. Nem o cidadão orgânico de uma República adulta que acredita nos canais instituídos para reclamação ou protesto. Mas o gestor de grande empresa que ele também é. Alguém que, no seu voo de águia, sabe localizar o contacto adequado a este imbróglio. Antes deste segundo dia acabar, consegue assim que lhe enviem a listagem das dívidas que não tem, para poder, ao terceiro dia, provar documentalmente estarem pagas. O que acaba por fazer, entregando trinta e sete documentos (de que não devia ser o único detentor). É tranquilizado verbalmente, mas a penhora não é ainda levantada. E, ao sair, lê no cartaz afixado na parede o primeiro dos "Sete compromissos da Segurança Social": "Clientes satisfeitos: oferecer bons serviços aos clientes" (sublinhados meus).
À hora em que escrevo, o Sr. Alfa, cidadão respeitado, interroga-se. Pode-se ter a conta penhorada sem prévia intimação (ou qualquer informação) para pagar? Criamos empresas "na hora", mas, feita a demonstração documental da inexistência da dívida (o que, já de si, releva da inversão do ónus da prova), não temos mecanismos para levantar a penhora "na hora"? Como vai o Estado assumir, perante os trabalhadores e fornecedores da empresa e perante o banco, a culpa do erro cometido, para que o direito a um bom nome construído ao longo da vida não soçobre às mãos de uma garotice administrativa?
E eu questiono-me ainda: se Alfa, pequeno empresário por conta própria, não fosse também o Sr. Alfa, gestor de uma grande empresa, teria a organização contabilística que lhe permitiu responder em poucas horas? Teria o desembaraço, social e profissional, para tão rapidamente chegar de novo ao fim da bicha?
Tudo isto, que é factual e verdadeiro, suscita inquietação. Os protagonistas do poder, em Portugal, pertencem à última geração que guarda memória própria da vida em ditadura. São gente ainda capaz de descortinar, no tempo quase real da emoção e do instinto, as questões da liberdade e da cidadania nas pequenas pulsões do quotidiano. Mas os ónus da redução do défice e da sustentação de um modelo social ameaçado têm trazido para uma segunda linha do poder administrativo gente mais jovem, serva de critérios de eficácia mensurável e convicta de que, com uma mão na calculadora e outra no rato do computador, as almas, sem brio, entram e saem do redil a bem da Pátria. Esses não viveram a cidadania quando ela era dádiva e risco, pelo que agora só nos vêem "clientes" e acreditam que "comando" é "serviço" em movimento.
A responsabilidade (e a oportunidade) de acompanhar as reformas com uma adequada formação de quadros e uma cuidada selecção dos executantes cabe aos titulares dos poderes electivos. Se esta última geração falhar, teremos um dia nesse mesmo poder os que não vêem Bruxelas como um arrimo para os nossos problemas, antes nos vêem a nós como um arrimo para os problemas de Bruxelas.
«DN» de 3 de Junho de 2007

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2 Comments:

Blogger odete pinto said...

Ainda bem que este artigo foi escrito por Nuno Brederode Santos, porque a sua credibilidade e dramática eloquência são, generalizadamente, inquestionáveis.

E há tantos casos, de similar importância, que carecem de ser divulgados com o talento, arte, e tantas vezes com a fina ironia de Nuno Brederode Santos!

3 de junho de 2007 às 22:29  
Anonymous Anónimo said...

Essa de culpar quem não conheceu a ditadura é uma ideia peregrina! Eu pensaria mais em culpar a geração que "guarda memória própria da vida em ditadura", ou não é essa a que tem estado no poder desde 1974 para beneficio de poucos que não quem divide a esfera do poder politico. Mentalidades...

4 de junho de 2007 às 14:05  

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