15.7.07

DIA DE CÃO

Por Nuno Brederode Santos
POR SAIR AO DOMINGO, este espaço está sujeito à maldição dos períodos de reflexão eleitoral. Ainda há pouco mais de um ano, tal sucedeu com as presidenciais e eu derramei por aqui meia dose de queixumes e outro tanto mau feitio. E embora a autocitação costume ser vista como uma variante benigna de onanismo, seja-me consentido algum recurso a ela.
A reflexão imposta por lei é o produto directo e linear de uma transição democrática. Ao cabo de quase meio século de cidadania mutilada, o seu pleno exercício, pelos cidadãos em tirocínio que nós éramos, parecia aconselhar medidas dessas. Mas, trinta e tal anos e dezenas de votações depois, a sua subsistência é a manifestação de um puro paternalismo de Estado. "O Estado legislador já não protege o cidadão. Protege, sim, o estado administrador contra algumas maçadas técnicas." Cada um devia "ser dono e senhor do período de reflexão de que carece (se é que carece de algum)", porque o dispositivo, "concebido para defesa do repouso intelectual dos eleitores, só parece já salvaguardar o repouso físico dos candidatos".
Ora, porque assim não é, o dia de reflexão torna-se estranho, enevoado e penoso de viver. Há uma bruma anómala à nossa volta e parece que nos movemos numa second life onde cada olhar é um espanto e cada passo uma aventura. De manhã, no café, primam pela ausência os amigos e vizinhos mais político-dependentes. E os demais avatares que pontuam a esplanada são seres desconhecidos, translúcidos e dotados de sorrisos lentos e mãos que mexem como num espaço sem gravidade. É assim nas Amoreiras velhas, uma amável aldeia urbana, logo pela manhã. Mas é assim também em Campo de Ourique, cidade na cidade, bairro onde nasci e ao qual muito me liga ainda. (Por vezes, nem sei ao certo em qual moro. Em qualquer deles vem-me à mente uma frase provocatória do Lee Marvin/Liberty Valance, no clássico de John Ford: "Home is where I hang my hat", que eu peço licença para traduzir por "Eu moro onde penduro o meu chapéu").
É nesse ambiente equívoco, feito de trocas de olhares entre gente vagamente conhecida, que se gera uma forma bizarra de cerimónia cívica, por força da qual ninguém diz nada que remotamente evoque as eleições iminentes. Como se a opinião de um pudesse lesar, ou contagiar, o outro. Ou o juízo deste, que na véspera teria sido de seu inteiro direito, fosse hoje um abuso ou uma agressão. A meio do dia, já quase preferimos não conhecer ninguém. É certo que, quando eu nasci, também não conhecia cá ninguém. Mas, demasiadas décadas depois, um exercício de quase regresso ao útero materno violenta uma vida inteira de direitos adquiridos. É maçador, embaraçoso - enfim, em sentido próprio, um atraso de vida.
Ignoro que remédio lhe dão os mais destemidos. Por mim, recolho às vantagens práticas de uma resposta tímida e timorata à situação: recolho a casa. Onde não terei serenidade psicológica para ler, nem vertigem activista para escrever. Olharei bovinamente para a televisão, na esperança (sempre) vã de ver passar, por entre as pálpebras a meia haste, o relance de um candidato, a sombra de um eleitor ou, ao menos, o olhar cúmplice de um "pivot" de telejornal a transmitir-me qualquer coisa que se assemelhe, já não a solidariedade, mas pelo menos a um pouco de compreensão. Em vez disso, porém, serei bombardeado com desastres de viação, fogos frustrados, crimes passionais e patetices ditas "sociais" de "celebridades" que o não são. Com sorte, terei talvez o comendador Berardo a explicar mais uma iniciativa altruísta. Ou até um dirigente da oposição a dizer que exige ao poder o que não pode dar e um governante a dar-me aquilo que já é meu. Depois, terei minuciosas e por vezes ininteligíveis notícias sobre acontecimentos políticos, mas da Europa e do Mundo, onde a maldição não chega. E, logo que se tenha dado despacho a quase vinte minutos de electrodomésticos, automóveis, detergentes, telemóveis e supermercados, servir-me-ão os eventos do mundo admirável da época das transferências no futebol nacional.
Está escrito, vai ser assim. E, pelos vistos, até que a morte nos separe.
«DN» de 15 de Julho de 2007

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5 Comments:

Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Importam-se que eu vote?

(Este desabafo, publicado há cerca de 2 anos, continua, em boa parte, válido...)

Já não é a primeira vez que tal sucede:

Depois de eu ter dado o meu contributo para uma determinada votação, aparecem uns cavalheiros a vangloriar-se de que, com o meu voto, tinham ganho uma outra eleição completamente diferente daquela em que eu havia participado!

Eu explico melhor:

Faz agora quatro anos que votei para as autárquicas.

Ora, quando eu julgava que tinha ajudado a escolher as pessoas mais indicadas para tratarem de coisas como o trânsito caótico ou os excrementos de cão na cidade onde resido, eis que Guterres me informa que não foi nada disso! Sem o meu conhecimento (e menos ainda com o meu acordo), alguém decidiu que eu, afinal, tinha votado para correr com o governo dele... e o homem sumiu!

Felizmente, tempos depois, para as eleições europeias, os principais partidos tiveram a gentileza de, atempadamente, nos esclarecer que, afinal, não iríamos votar para elas:

O PS proclamou que a votação seria um «cartão amarelo» ao governo; o PCP também, só mudando a cor para vermelho; e, por fim, o próprio Durão Barroso (concordando com essa leitura quando devia ser o primeiro a contestá-la!), disse que «tinha entendido o sinal do povo», pelo que, logo que pôde, fez as malas e... «Baza, que é bué da tarde!».

E é por tudo isso que, para as eleições autárquicas de Outubro, já estou pelos cabelos só de ouvir a mesma conversa: a rapaziada dos partidos propõe-se pegar no meu (eventual...) voto, desviá-lo, e brandi-lo como se ele fosse dado para apoiar ou rejeitar o governo de Sócrates - um pouco como se eu doasse dinheiro para as vítimas do Katrina e ele fosse direitinho para as campanhas do senhor Major ou de Avelino Ferreira Torres!

Perante tal embuste (que se repete eleição-após-eleição, e em que todos os partidos colaboram entusiástica e alegremente), eu só gostava que o José Mário Branco se candidatasse. É que toda essa gente que por aí anda me dá uma grande vontade de votar em BRANCO...

15 de julho de 2007 às 13:04  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

NOTA: Nessa eleição (Autárquicas de 2005) votei, de facto, em branco.

Foi a 1ª (e única) vez que o fiz, e ainda hoje não estou arrependido!

15 de julho de 2007 às 13:08  
Anonymous Anónimo said...

Caro Medina : votaste em branco, mas não sabes se o teu voto ficou branco... ou se, durante a confusão da contagem, um qualquer finório lhe pôs a cruzinha onde lhe interessava.
Nunca se deve deixar o boletim em branco. É por isso que desde há vários anos faço uma cruzona a apanhar todo o boletim de voto.
Jorge Oliveira

15 de julho de 2007 às 13:32  
Blogger C Valente said...

Alguem nos quer pouco desenvolvidos, pouco criticos, são eles as mentalidades tacanhas que nos perseguem.
Eu quando voto, e voto sempre, pois por enquanto ainda é um direito que nos assiste,
Estas eleições são demasiados para uma Camâra Munic. falida. será?,
ora se não estivesse eram mais que as mães
Saudações

15 de julho de 2007 às 18:55  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

O texto que em cima publiquei é de 2005. Hoje não votei em branco nem me abstive.

__

NOTA: As preocupações de J.O. são mais do que legítimas. O livro de João Ramos de Almeida «Eleições Viciadas? O Frágil Destino dos Votos. Autárquicas de 2001 em Lisboa» não nos deixa tranquilos.

15 de julho de 2007 às 20:32  

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