7.1.08

“Ordes” é que eles sabem dar…

Por Alice Vieira
A MINHA TIA AMÉLIA, nada e criada numa aldeia transmontana para lá do sol posto, foi abandonada pelo marido nos alvores da sua mocidade. De quem a culpa, nestas coisas é quase sempre difícil encontrar a verdade, que até nem vem para o caso. O que é facto é que, muitos anos depois, quando o dito marido morreu, a segunda família do senhor achou por bem convidá-la a comparecer à leitura do testamento do falecido.
Muito séria, no meio de gente que nunca tinha visto, lá foi ouvindo as últimas vontades do morto: que não queria que chorassem por ele, que não queria flores no enterro, que queria que o seu nome fosse perpetuado numa placa de uma rua da aldeia, que queria que todos os seus descendentes guardassem o seu apelido, que queria isto e mais aquilo – até que a pobre da tia Amélia se levantou, suspirou fundo, dirigiu-se para a porta de saída e disse, no seu português de mulher do campo: “Ordes”, “ordes” é que ele deixou!”
Todos os dias me lembro da minha tia Amélia, quando leio os jornais e lá vem mais uma “orde” da ASAE - mais uma proibição de qualquer coisa que se fazia e agora já não se pode fazer, mais uma proibição de utilizar o que até agora se utilizava mas que já não se pode utilizar, e por aí fora. E dou comigo a repetir, “ordes”, “ordes” é tudo o que eles sabem dar!”
Acho que nunca recebemos tantas ordens como nestes últimos tempos. Nunca se proibiu tanta coisa como nestes últimos dias.
E cautela, meus amigos! Olhem que se começa por proibir a beata e a colher de pau - e acaba-se a proibir a livre troca de ideias!
E tudo feito, é claro, a pensar no nosso bem! Nada de contaminações perigosas, tudo asséptico, tudo muito, muito mas muito puro. (Houve um tipo, aqui há uns anos, coitado, que também só queria a pureza da raça, e a história acabou muito mal…) e lá dizia um escritor famoso, “não concebo melhor definição de inferno do que um mundo perfeito”.
Todos os fundamentalismos dão para o torto, não tenhamos dúvidas. Resta saber é se, no fim de tudo, ainda iremos a tempo de nos endireitar.
Por isso deixem-me hoje louvar aqui o “Corte Inglês” de Lisboa (e passe a publicidade, de que ele, aliás, nem precisa…) que reservou para os fumadores o melhor espaço da sua cafetaria, com magníficas vistas para o Parque Eduardo VII ! Enquanto os não-fumadores têm de esperar a sua vez para conseguirem um lugarzinho na sala (são muitos, a sala enche com facilidade, e depois toda a gente fala muito alto, as crianças choram, etc.) - lá ao fundo, na sala dos fumadores é um sossego, as paredes de vidro instaladas agora para protecção das pessoas resguardam-nos da barulheira, olhamos o verde à nossa volta e, como a exclusão gera quase sempre cumplicidades, acabamos a sorrir para o vizinho do lado, a confraternizar com o empregado que nos traz a salada, enquanto calmamente vamos lendo o jornal, e coleccionando mais umas “ordes” que os senhores que mandam nisto nos vão dando…
«JN» de 6 de Janeiro de 2008

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5 Comments:

Blogger frutinha said...

quando a pedagogia é sabiamente usada... é "outra louça"...

simplesmente delicioso!...

a professora :)

7 de janeiro de 2008 às 22:00  
Blogger Cosmo said...

Às ordes do ex-marido da sua tia pode ela, (e eu) virar costas, porque ele (felizmente) já está morto...
O problema é virarmos costas também às ordes dos vivinhos da silva, quando deveríamos era enfrentá-los!...

8 de janeiro de 2008 às 02:52  
Blogger joshua said...

Muito bem, Alice. Alguns de nós, de tão irreverentes que são, não podem estás às 'ordes' de ninguém e nem por isso vem algum mal ao mundo, uma vez que, muitas vezes, são esses que praticam aquela anarquia organizada e pessoal que não faz mal a uma mosca.

Mais facilmente esses tais se levantam, escrevem, protestam, manifestam-se, não se ficam porque a Liberdade sopra-lhes a partir de dentro e para além da conformidade das vozes com os portentados que lhes pagam.

Sou um desses e registo com agrado estes teus apontamentos de lucidez em relação à tónica 'imperativesca' excessiva do momento.

Eu lia o que há um par de anos escrevias em abono da Ministra Lurdes, pelo menos dando-lhe o benefício da dúvida, e pasmava com um entusiasmo justiceiro de um punhado de colegas docentes, na Faculdade de Letras do Porto, a respeito daquela.

Hoje, porém, de um modo geral, cada vez são mais os que guinam bruscos das suas aclamações iniciais para uma enorme reserva em relação às Luminárias que nos agora nos regem com os Absolutos da Assepsia.

Entre a insatisfação e o medo, começa a desaparecer o meio termo.

Beijos
PALAVROSSAVRVS REX!

8 de janeiro de 2008 às 04:44  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Pede-se a Armando Santos o favor de voltar a afixar o comentário de há pouco.

Obrigado.

8 de janeiro de 2008 às 17:45  
Blogger O Gato Preto said...

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Os que bons conselhos dão
ás vezes fazem-me rir
por ver que eles mesmos, são
incapazes de os seguir.
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António Aleixo
poeta popular do ALLgarve

9 de janeiro de 2008 às 12:07  

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