30.3.08

Por detrás da cena

Nuno Brederode Santos
MAIS UMA IDA DO PRIMEIRO-MINISTRO, por "ordem" (ou convocação) da oposição, relançou a ponderação sobre as vantagens e inconvenientes, para o actual Governo, da reforma do Parlamento. Os observadores ainda não se refizeram da surpresa de ver, após décadas de um funcionamento concebido para sujeitar os governos aos mínimos olímpicos do pudor institucional em democracia, uma maioria parlamentar tomar a iniciativa de abdicar da esmagadora vantagem de que beneficiava e, em nome de um futuro em que também ela irá socorrer-se do estatuto de oposição, sujeitar o seu governo ao sistemático escrutínio de todos os deputados e o seu chefe a uma prestação de contas quinzenal. Eu fui dos que mais cedo e mais insistentemente escreveram sobre isso e também não estou ainda inteiramente refeito da surpresa que o bom desenlace me trouxe.
Esqueçamos, porém, a especulação subjectivista dos candidatos a biógrafos: o que pensou e quis Sócrates, ou Marques Mendes, ou Jerónimo, ou Louçã, ou Paulo Portas. E atenhamo-nos ao facto em si. A verdade é que, expondo mais os primeiros-ministros ao contraditório parlamentar e à crítica democrática, tirou-se-lhes a impunidade dos passeios triunfais, que faziam do interlocutor gato-sapato e do Parlamento o cenário de comunicações ao País: quase "conversas em família" do regime democrático, um exercício tão altaneiro do poder que apetecia lançar-lhes à cara o memento mori dos monges trapistas. Sujeitámo-los a uma prova mais equitativa, com os riscos inerentes à atenção vigil do eleitorado. Mas também se lhes valorizou - e muito - as vitórias que conseguirem averbar. Ali, sem rede e connosco a ver.
De tal modo a surpresa foi além da chinela, que logo começaram as ponderações sobre os efeitos e a valia da reforma. Ainda agora o DN ouviu dois investigadores do ICS (Marina Costa Lobo e António Costa Pinto) sobre a aplicação e a experiência da reforma - sendo que ambos globalmente a aprovavam, mesmo que com as naturais e previsíveis nuances na justificação. Ela salientando que "a hierarquia do Estado" valorizava mais a posição do primeiro-ministro, mas isso agora encontra-se nivelado; e sublinhando o ganho na imagem (eu prefiro o do papel) da Assembleia da República. Ele, admitindo o reforço da intervenção dos partidos mais pequenos, mas sobretudo assinalando o benefício global da instituição parlamentar.
E é neste benefício, em que ambos convergem, que reside o mais importante da reforma. Até por uma razão que considero a montante destas. É que, na surdina dos seus estudos académicos, os nossos constitucionalistas vão esgrimindo sensibilidades para a caracterização do regime em que vivemos. Emergem até, aos olhos de todos, quando um qualquer incidente da praxis constitucional lhes convoca a atenção. E debaterão ainda - e bem - por muitos anos a exacta configuração e a correcta catalogação da democracia portuguesa. Uns, defendendo uma melhor sustentação dos poderes presidenciais no quadro constitucional, outros sinalizando o fundo parlamentar desse mesmo quadro. Uma coisa, porém, parece certa. Não é transferindo mais poderes do Presidente para o Parlamento, nem procurando reforçá-los à custa deste, que alguma coisa se ganha, em termos de clareza, segurança e funcionalidade. É, sim, aprofundando a prática (que já não é escassa) de ambos e valorizando os poderes de cada qual. Em parte, tal caberá à relação entre os dois órgãos: e essa parte até não tem corrido mal. Noutra parte, caberá à capacidade que cada um tiver para esclarecer e enriquecer o seu estatuto e as suas competências. E isso só pode ser feito, com perspectivas de futuro, quando aquele que a tal procede tem a implantação e a aceitação social (e não meramente jurídica) que a paz institucional lhe confere e tem respeito político (e não meramente jurídico) pelo equilíbrio de poderes. Isto é, quando um poder entre poderes enverga de novo a toga inconsútil romana - que, na insegurança da História, a lenda manda prezar.
Por incertos que tenha tornado os dias parlamentares, por arriscados que tenha feito os improvisos, por tremenda e caprichosa que passe a ser a responsabilidade da palavra, é isto o que mais devemos à reforma com que o parlamento passou a melhor cumprir o seu papel.
«DN» de 30 Mar 08

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