1.4.08

A geração do écran

Por Alice Vieira
DESCULPEM SE TRAGO HOJE À BAILA a história da professora agredida pela aluna numa escola do Porto, um caso de que já toda a gente falou, mas estive longe da civilização por uns dias e, diante de tudo o que agora vi e ouvi (sim, também vi o vídeo) palavra que a única coisa que acho verdadeiramente espantosa é o espanto das pessoas.
Só quem não tem entrado numa escola nestes últimos anos, só quem não contacta com gente desta idade, só quem não anda nas ruas nem nos transportes públicos, só quem nunca viu os “Morangos com Açúcar”, só quem tem andado completamente cego (e surdo) de todo é que pode ter ficado surpreendido.
Se isto fosse o caso isolado de uma aluna que tivesse ultrapassado todos os limites e agredido uma professora pelo mais fútil dos motivos – bem estaríamos nós! Haveria um culpado, haveria um castigo, e o caso arrumava-se.
Mas casos destes existem pelas escolas do país inteiro. (Só mesmo a Sra. Ministra - que não entra numa escola sem avisar… - é que tem coragem de afirmar que não existe violência nas escolas…)
Este caso só é mais importante do que outros porque apareceu em vídeo, e foi levado à televisão, e agora sim, agora sabemos finalmente que a violência existe!
O pior é que isto não tem apenas a ver com uma aluna, ou com uma professora, ou com uma escola, ou com um extracto social.
Isto tem a ver com qualquer coisa de muito mais profundo e muito mais assustador.
Isto tem a ver com a espécie de geração que estamos a criar.
Há anos que as nossas crianças não são educadas por pessoas. Há anos que as nossas crianças são educadas por écrans.
E o vidro não cria empatia. A empatia só se cria se, diante dos nossos olhos, tivermos outros olhos, se tivermos um rosto humano.
E por isso as nossas crianças crescem sem emoções, crescem frias por dentro, sem um olhar para os outros que as rodeiam.
Durante anos foram criadas na ilusão de que tudo lhes era permitido.
Durante anos foram criadas na ilusão de que a vida era uma longa avenida de prazer, sem regras, sem leis, e que nada, absolutamente nada, dava trabalho.
E durante anos os pais e os professores foram deixando que isto acontecesse.
A aluna que agrediu esta professora (e onde estavam as auxiliares-não-sei-de-quê, que dantes se chamavam contínuas, que não deram por aquela barulheira e nem sequer se lembraram de abrir a porta da sala para ver o que se passava?) é a mesma que empurra um velho no autocarro, ou o insulta com palavrões de carroceiro (que me perdoem os carroceiros), ou espeta um gelado na cara de uma (outra) professora, e muitas outras coisas igualmente verdadeiras que se passam todos os dias.
A escola, hoje, serve para tudo menos para estudar.
A casa, hoje, serve para tudo menos para dar (as mínimas) noções de comportamento.
E eles vão continuando a viver, desumanizados, diante de um écran.
E nós deixamos.
«JN» de 30 Mar 08

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9 Comments:

Anonymous Anónimo said...

No meu tempo de escola quando algum colega fazia algo do género, colocar os pés em cima de uma cadeira a professora perguntava, num tom repreensivo: - Em tua casa fazes isso? E a resposta era, muito envergonhado/a: - Não, professora. E de imediato retirava os pés da cadeira.
Salvaguardo o facto de nunca ter assistido a nenhum "confronto" fisico nas aulas. Existia educação!
Imaginemos esta situação agora. O que me passa pela cabeça é a imagem de um aluno a atirar com a cadeira ao professor e a dizer milhares de palavrões.
Como serão estas pessoas quando chegarem a adultos. Que educação irão eles dar aos seus filhos.
É muito, muito preocupante.

1 de abril de 2008 às 15:27  
Blogger Eu mesmo said...

É com muita tristeza que, como aluno, vejo o que considero ser a pedra basilar de qualquer país que se diz desenvolvido, a educação, estar no que parece ser uma eterna fila para as urgências de um hospital qualquer, no qual todo o pessoal administrativo resolveu doar parte do cérebro à lixeira mais próxima, não deixando que os médicos exercessem a sua profissão.
Nesse hospital, os doentes, baseados numa atabalhoada concepção romântica de liberdade, resolvem andar ao estalo com os médicos, isto porque se está num país livre e porque não faz parte da sua "realidade" o respeito por quem tem algo para ensinar; resolvem mandar as macas pela janela, não precisam delas, alguém há-de precisar, azar; resolvem isto e aquilo, porque são donos deles próprios e porque ninguém tem nada com isso.
A partir de toda esta mistela de arrogância mal cheirosa com morangos impróprios para consumo, apoiada por uns quantos iluminados que pretendem que se olhe antes a "realidade" de cada aluno que uma explicação do Teorema de Pitágoras, não espero nada deste país além dum monte de gente mal preparada para a vida.

1 de abril de 2008 às 17:02  
Blogger Jack said...

As contínuas, Deus lhe perdoe, foi o nosso Marocas, que lhes tirou o pio. Como é sabido, havia as contínuas e as senhoras da limpeza. O Mário promoveu as da limpeza a contínuas, no interior algumas nem tinham a 4.classe e tiveram inclusive de aprender a assinar. As contínuas despromoveu-as mandando-as fazer a limpeza. O resultado, foi o que vi durante alguns anos naquele tempo. Deixaram de se preocupar com os alunos e passaram a limpar, durante o dia, as salas vagas para poderem sair à hora. Infelizmente, o mal não é só de agora .... Nisto do ensino todos têm culpas no cartório.

1 de abril de 2008 às 17:44  
Blogger Alice Vieira said...

Bernardo,

O pior é que hoje, se lhes perguntarem "lá em casa fazes isso?"- eles respondem que sim.

1 de abril de 2008 às 19:30  
Blogger Rui Diniz Monteiro said...

Alice Vieira,
não sei se disse isto com ironia, mas é mesmo verdade: eu já deixei de fazer essa pergunta, porque eles dizem que sim; e já deixei de o perguntar aos pais, porque eles dizem muitas vezes também que sim.
Quanto às auxiliares: são senhoras de idade, a ganhar misérias, que nunca esperaram ouvir o que ouvem hoje em dia. Eu já não as chamo; a única vez que o fiz, o aluno ameaçou-a de lhe "dar uma pêra" se lhe tocasse... e não saiu da sala de aula.
Só estes dois esclarecimentos, porque estou totalmente de acordo com tudo o que escreveu.

1 de abril de 2008 às 19:55  
Blogger R. da Cunha said...

Diz-se que há males que vêm por bem. Pode acontecer (oxalá aconteça), que o caso Carolina Michaelis venha dar um grande abanão nas regras em vigor.
Preferia, no entanto, não ver a PGR metida nisto, salvo verdadeiros casos de índole criminal.

2 de abril de 2008 às 00:35  
Blogger Daniel Marinha said...

Minha gente, será possível enfiarem a cabeça mais fundo ainda no buraco do pessimismo?
Eu percebo os motivos de queixa, eu então, que tenho pavor de exposição pública, imagino a tensão psicológica a que os professores estão sujeitos, mas também não exageremos. O mundo não está perdido, e a educação, e o futuro das criancinhas e do país também não. Pensem portanto em dobrar e voltar a arrumar as bandeirinhas do apocalipse. E instigo a reflectirem de forma um pouco mais optimista, talvez, mas eu nem penso que se trate tanto de optimismo como de relativismo. Penso que através do último facilmente se chegará ao primeiro. O optimismo, aliás, deverá ser sempre que possível um resultado. Como factor pode tornar-se demasiado condicionante.
Esta conversa de "esta juventude está toda estragada" deve estar no topo das ideias mais recicladas da história das civilizações. E há muito que eu pensava tratar-se de um sintoma de miopia histórica. Penso-o desde que um professor de psicologia do 12º nos mostrou vários textos não datados que repetiam esse mesmo tipo de frases, e nos perguntou de quando imaginávamos serem esses textos. A resposta era antigas Roma, Grécia e Egipto. E espero que o conhecido declínio destas civilizações não seja para vós todos uma prova da vossa razão. Estes eram apenas exemplos. Aposto que no “Portugal” desses tempos já se ouvia a mesma coisa. A verdade é que ninguém na turma imaginou que assim fossem, “Tão velhos!”. Pessoalmente foi um peso de cima da minha consciência adolescente descobrir que eu não era o responsável pelo mal-estar geral do país. Quem pinta este tipo de quadro tenta vendê-lo para a casa de arte contemporânea, quando o local indicado seria no museu de arte antiga.
Há alunos problemáticos desde que há crianças e adolescentes problemáticos. E acreditem ou não, estes sempre conviveram com pais e professores igualmente problemáticos. Isto não é um exclusivo dos nossos tempos. Eu convivi com um professor de escola primária que batia com a régua nos nós dos dedos das mãos dobradas de crianças dos 5-10 anos. No ciclo fui espancado repetidas vezes pelo professor de Educação Física (não poderia ser mais irónico o nome), que entre outras coisas, me segurou debaixo de água até eu quase sufocar, como castigo por me ter sentado na borda da piscina na última meia-hora de aula, quando ele berrava “à vontade!”. No liceu fui abusado durante 5 anos por uma professora que para além de berrar e insultar quotidianamente, atirava giz (prática aliás comum entre muitos stôres), esbofeteava e enfiava a cara dos alunos no quadro. Na universidade tive vários professores que faziam questão de mostrar que dar aulas e ensinar alunos de graduação era simplesmente uma perca de tempo quando poderiam estar a escrever outro artigo. Alguns chegaram mesmo a dizê-lo. E os Pais que faziam? Bom, na escola primária, quando os filhos deles apareciam com as mãos pisadas em casa, a reacção normal era darem-lhe um pouco mais de educação “à moda antiga” porque era uma vergonha toda a gente saber que o filho deles era um burro. No ciclo, nenhum fez nada nada depois de termos combinados em grupo contar-lhes o que se passava na aula de E.F.. No liceu ainda houve quem processasse a professora em tribunal, e ganhasse – conseguiu com isso mudar de turma. Aos da universidade, nem a lei lhes toca. Lembram-se do Taveira? O resultado no final foi o mesmo: todos continuaram a dar aulas, nas mesmas instituições ou não muito distantes, até à sagrada reforma.
Tenho a certeza que há muitos como eu com histórias tão “chocantes” como essas que andam por aí sobre os alunos. E não me venham falar do apologismo dos pais e da sociedade. Quem me dera a mim ter um telemóvel com camera naquela altura. Perdoem-me portanto se não vos pareço particularmente ansioso por colocar os meus filhos, ou os filhos de quem fôr, numa escola que se diga, orgulhosamente, “como dantes”. A “boa-educação” que muitos professores e pais conheceram naquela época, na verdade era medo e quem disser o contrário precisa de se explicar muito bem se não quiser ser tomado por hipócrita.
O que se trata aqui são se “alguns” alunos, “alguns” professores, no fundo de “alguns” membros de uma sociedade que vai alternando as condições mais favoráveis ao desenvolvimento de uns comportamentos em deterimento de outros. Nada mais. Não generalizemos dessa forma míope e absurda. No meio desses maus exemplos de professores, tenho alguns maus exemplos de alunos, e nalguns incluo-me pessoalmente. Mas também vos digo, tive bons professores. Muito bons. Gente que ensinava exactamente a mesma turma que numas aulas era abusada, e noutras abusava, mas que de alguma forma, nos ensinava e aparentemente sem nenhum esforço suplementar. Só eles vos poderão contar como conseguiam – eu nunca cheguei a perceber. Mas certamente não era por magia. Será que no meio dessas descrições de alunos grotescos não haverá espaço para uma excepção, uma reflexão positiva, algum constraste? Apenas os ecos de um queixume milenar...
O paradigma mudou, e agora algo mais terá de mudar para equilibrar. Antes era fácil dominar uma turma pelo medo físico, ou psicológico, ou com a ameça dos pais, ou das expulsões, ou dos chumbos. Agora parece que já não é assim e isso torna a vida muito, mas muito complicada aos professores, principalmente pela falta da responsabilização do aluno e agregado familiar através dos chumbos, talvez mesmo através das expulsões. É óbvio que a escola precisa deste tipo de regras e de mecanismos de punição de comportamentos errados, mal como qualquer sociedade e instituição. Mas parece que o eixo se deslocou para uma nova posição. No entanto estou certo que ainda assim há professores que sabem como dar aulas nessas condições. Seja como fôr, a posição anterior também não era a mais adequada. Talvez apenas tenha de oscilar mais umas vezes até encontrar o ponto de equilíbrio. Entretanto, um dia será da caça...

2 de abril de 2008 às 10:39  
Blogger Antunes Ferreira said...

Uma nota prévia: a minha querida Alice continua na maior. No nosso tempo (em que os animais falavam) diria que ela era aquela máááááááquiiiiiinaaaaa!!!!!

A Primeira República - ainda se lembram dela, pelo menos pelos relatos históricos? - avançou com uma ideia «revolucionária»: a família dá a educação; a escola dá a instrução.

Hoje, não se sabe quem educa ou quem instrui quem. Estou completamente de acordo com a minha Amiga Alice, companheira de muitos trabalhos e muitos tempos no DN.

Que crianças, que adolescentes, que mais velhinhos estamos a criar. Virtuais. Palavra que me deixa assarapantado. Reais - há poucos, porque ainda vai havendo quem lhes dê normas de comportamento cívico, normas de vida.

O salazarento regime deu-nos aulas de Religião e Moral e de OPAN, a famigerada Organização Política e Administrativada Nação. Pois mesmo assim, os estudantes, confrontados com tais iniquidades, não batiam nos professores, não partiam, muito menos incendiavam as instalações das escolas.

Não chamo aqui à colação qualquer tipo de saudosismo bacoco. Hoje, somos o que somos, baseados, porém, no que já fomos. Tantos de nós bateram-se (até com riscos físicos) contra uma ditadura de trazer por casa, rasteirinha, que nem chegava a má, pois não passava de medíocre.

Estavamos a ultrapassar - e com que dificuldades, minhas Senhoras e meus Senhores - o anátema do Deus, Pátria e Família, que as Ditaduras Italiana, Espanhola, Nazi e Portuguesa tinham como emblema. Algo nos fazia mover. Idealismo? Quiçá. Mas avançavamos.

Todas as gerações, a minha, as que nos antecederam, dos nossos pais e avós e mais para trás criticaram as juventudes e os seus excessos. Os nossos filhos e os nossos netos, parecia que, em Liberdade e Democracia, dariam sérios passos (e seguros) em frente.

Muitos o fizeram, muitos o fazem, muitos o farão. Mas, para mim, a Liberdade e a Democracia, bens sagrados, não inclui as agressões aos professores ou os comportamentos inqualificáveis de repórteres de telemóveis.

Por isso, esta minha posição sobre os virtuais que não são nada. Sobre os moranguitos decalcados dos ecrãs televisivos. A educação dos televisores de plasma, a cultura do Google. assustam-me. Se calhar é por ser já um velho a caminho dos 67 anos.

Persisto em acreditar na Juventude. A não ser assim - o que será o amanhã? Mas também persisto na educação, no comportamento democrático e livre, na prática da cidadania, bem inultrapassável, imprescindível.

Por isso, estou, uma vez mais, com a minha querida Alice Vieira.Tenho Esperança; mas também tenho receio. Medo. E não me venham chamar pessimista ou velho do Restelo. A PIDE não me considerou assim, podem crer. As escolas por onde passei, mais os meus progenitores, fizeram de mim aquilo que sou.

A escola e a família não se podem demitir. O País não pode deixá-las sequer tentar. Demissão de si próprio não leva a lado nenhum. Perdão. Leva. Não sei onde, mas, pelo andar da carruagem, não será a boa estação.

4 de abril de 2008 às 01:10  
Blogger rc said...

Acrescento ao seu magnifico texto, que é orgulho do nosso Primeiro Ministro, a "revolução" que está a fazer nas escolas de Portugal, enchendo-as de ecrãs! 1 por cada 2 alunos!

E a banda muito larga de internet!

É assim que um Primeiro Ministro pensa a educação em Portugal e está tudo dito.

4 de abril de 2008 às 14:21  

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