«Lisbon taxi driver»
É MAGRO como um fio de azeite. Tem, a atravessar a sua magreza, um bigode tipo escova que quase pode ser visto por trás e sobe e desce, a compasso, com a maçã-de-adão. O cabelo cobre-lhe as orelhas apenas o suficiente e cai-lhe em franja sobre a testa.
Fala compassadamente, mas com toda a malandrice congénita àqueles que nasceram em Arroios, bairro de Lisboa, cidade de galfarros e andorinhas com quem há sempre que contar, no meio de beirões sorumbáticos e minhotos-quase-galegos dos frangos assados no espeto, com gindungo ou sem gindungo, consoante a extroversão e a marotice que se deseja para depois do pudim flan.
Atravessa a cidade devagar, nunca excedendo os cinquenta quilómetros por hora, mesmo quando rola por avenidas de onda verde ou transporta passageiros. Guia como se procurasse alguém. Se em vez dum táxi, verde e preto como todos os permitidos nesta cidade de Santo António, andasse a cavalo, certamente que vestiria de negro, com os coldres baixos, e olharia da mesma maneira os tristes peões, com esta expressão que parece querer dizer: «Foge, que Pat Garrett era um franganote ao pé de mim.»
Mulher que lhe entre no carro não escapa, pelo menos a uma boa, longa mirada, de alto a baixo, com paragens embaraçosas nos pontos mais delicados, onde ficam as coisas mais caracterizantes que uma mulher tem e que nela um homem mais aprecia.
Mas é de homens que gosta mais - para transportar, é bom de ver -, porque lhe dão pé para conversa à tira larga, ou mesmo para discussões violentas. E quando pressente ou descobre que o passageiro tem as características biológicas de uma vítima aí, sem parar, vira-se para trás, põe o braço direito ao longo das costas do banco da frente e diz para o pobre e timorato transportado:
- Passei catorze anos numa tropa de elite. Já ganhei dez contos por dia para guardar figurões cá da parvalheira. Sei o que são eleições e o que é a porca da política. Sou anarca e do Belenenses. Conheço bem o bas-fond porque tenho muita pedalada. Sou um driver. Sou um Lisbon taxi driver.
A partir daí, não há hipótese. Se se tem muita pressa, corre-se o risco de se ser abatido. Se se prolonga a conversa, corre-se o mesmo perigo por, mais tarde ou mais cedo, ser garantido que se chega a um ponto de conflito insanável.
- E sabe o meu amigo? Não pago um copo em toda a Lisboa. Entro, bebo e saio sem pagar. E sabe porquê? Porque tenho uma grande pedalada, porque durante sete anos vivi de noite, conheço tudo e todos, sei histórias. Não pago. Entro e saio e ninguém me diz «É tanto.» É o dizes! Sei histórias e conheço vícios. Sou um driver, um Lisbon taxi driver.
Encontrei-o uma noite destas, num bar. Estava num grupo, ouvia com atenção outro chavalo, numa roda de mais três ou quatro. Quando me viu, dirigiu-se-me naquela passada larga, aparentemente lenta, afastando-me daquela conversa de pintores, donas-marias, maravedis, ervas e aspirinas. Agarrou-me por um braço e avisou-me, este meu amigo driver, porque quem me avisa meu amigo é:
- Não faça por ouvir nada do que a malta está a combinar. Quanto menos souberem menos morrem. Olhe, o meu pai sempre me disse que vale mais roubar do que ser roubado. O meu pai é que sabia, porque foi cinquenta anos contratador da estiva. Sabe como ele me explicava? Explicava assim. «Para roubar é preciso um grau de inteligência; para ser roubado, um grau de estupidez.» Portanto, antes roubar do que ser roubado. Beba um copo e vá-se embora, que pago eu.
Cruza a cidade vagarosamente, no seu táxi verde e preto, com a sua figura de fio de azeite e o seu bigode negro a flutuar. Pode não se reparar nele, mas ele vê-nos a todos. Sabe tudo. Conhece histórias e adivinha vícios. É um driver. Um Lisbon taxi driver.
Lisboa, 1987
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