5.6.08

Um livro de muitas páginas

Por A. M. Galopim de Carvalho
Pintura de J. P. Martins Barata
NO SÉCULO X, NO IRAQUE, mais precisamente em Bassorá, a Enciclopédia de “Os Irmãos da Pureza” ensinava, numa notável antecipação, que a erosão destrói perpetuamente as montanhas e que o escorrer das águas pluviais arrasta pedras, areias e argilas para os leitos das torrentes e dos rios, e que estes, por seu turno, os transportam para os mares, onde se acumulam sob a forma de estratos. Nasceram aqui os conceitos de sedimentos e de rochas sedimentares que, afinal, não são mais do que sedimentos endurecidos ou, por outras palavras, petrificados. À luz dos conhecimentos actuais, estas afirmações são, por demais, evidentes, mas, ao tempo em que foram escritas, constituíram inovação face ao saber antigo. Oito séculos mais tarde, James Hutton, na Escócia, defendia que a história da Terra podia ser decifrada a partir do estudo das rochas sedimentares estratificadas, na certeza de que foram antigos sedimentos transformados em rocha ao longo de milhões e milhões de anos. Na sequência desta interpretação, unanimemente aceite pelos seus pares e ainda válida nos dias de hoje, as sucessões ou séries destes estratos ou camadas rochosas passaram a ser vistas como “arquivos da natureza”, visão que está na base de uma outra, mais recente, muito expressiva e divulgada, que as considera como “páginas de um livro” onde se pode ler grande parte da história do nosso planeta.
.. A estratificação é uma das características mais visíveis e marcantes das rochas sedimentares. O estudo das respectivas camadas visa, entre outros aspectos e com particular interesse, os ligados à sua idade, quer pela simples observação do seu natural empilhamento, quer através da identificação dos fósseis nelas contidos. A sobreposição das camadas torna possível a seriação no tempo, uma vez que a sua sucessão reflecte, por ordem cronológica, os acontecimentos geológicos que lhes deram origem ou que com elas estão relacionados. A análise da posição relativa dos estratos, entre si, conduziu, de imediato, à noção de idade relativa e ao estabelecimento de uma escala do tempo geológico, com base na aceitação de que uma camada é mais moderna do que a que lhe fica por baixo e mais antiga do que a que lhe fica por cima. Este conceito, mais do que evidente nos dias de hoje, foi inovação face ao saber científico do século XVII, ao ser formulado pelo naturalista dinamarquês Nicolau Steno. Por outro lado, as sucessivas formas de vida, cujos restos fossilizados se encontram conservados nessas rochas, representam elos de uma cadeia evolutiva, também ela seriada no tempo, o que tem permitido completar a referida escala.
.. No século XX, os avanços no domínio da física nuclear, no que toca o comportamento dos isótopos radioactivos de certos elementos químicos constituintes de alguns minerais das rochas como, por exemplo, o urânio, o potássio ou o tório, permitiu referir esta escala a uma cronologia baseada em números e, portanto, com valor absoluto e, geralmente, expressa em milhões de anos. Constantemente actualizada, abarca a seriação temporal dos principais acontecimentos ocorridos na Terra, desde a sua origem, há cerca de 4570 milhões de anos. Sabemos hoje, por exemplo, que aqui, em Lisboa, onde agora pisamos terra, foi mar há uns 600 milhões. Um mar que se fechou com a colisão de dois antiquíssimos continentes e que voltou, passados 500 milhões, para tornar a desaparecer mais tarde. Há cerca de 70 milhões, derramaram-se aqui lavas e cinzas de grandes vulcões activos, após o que, uma vez mais, o mar banhou a nossa cidade há uns 20 milhões.
«DN», 31 de Maio de 2008; estas crónicas estão também no blogue-arquivo Sopas de Pedra.

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1 Comments:

Blogger antónio m p said...

Sendo assim, parece-me pertinente começarmos a pensar no desenvolvimento de uma grande indústria de confecção de fatos de banho. E cursos de natação. Como dizem os bafejados... pela sorte, devemos encarar os problemas como desafios.

6 de junho de 2008 às 04:50  

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