COMO ERA A URBANIDADE EM 2011
(Este texto é escrito segundo as regras anteriores ao Acordo Ortográfico, entretanto revogado em 2018).
OS “CARROS” DE 2011
Há cem anos apenas, era comum, das janelas dos prédios, gritar “Água vai!” e lançar para a rua dejectos fecais e resíduos domésticos. O viandantes que se cuidassem e fugissem a tempo do perigo vindo de cima.
Há cinquenta anos, escarrar gosma purulenta para o chão era tão normal como assobiar e atirar dichotes de mau gosto para qualquer mulher ou rapariga que mostrasse mais que dez centímetros de perna nua.
Maravilhemo-nos. Há quinze anos, tornou-se finalmente comum passear o cão ou cadela pelos passeios da urbe com um saco de plástico enfiado no bolso das calças ou simplesmente na mão que segura a trela do bicho.
Maravilhemo-nos mais. Há uns meros dez anos, não era ainda considerado comportamento anti-social guiar pela cidade a velocidades estonteantes, como se fosse uma fatalidade matar quem se atravessava à frente do “carro” (os peões que fugissem do perigo).
Lembram-se dos “carros”, mastodontes de ferro e plástico que pesavam uma tonelada e se moviam a gasolina, aquele entretanto desaparecido líquido mal-cheiroso e poluente, responsável por tantas doenças respiratórias?
É extraordinário olhar para as fotografias das ruas de Lisboa há dez anos. Como é que aceitávamos viver assim? Milhares de carros em filas contínuas, com gente impaciente lá dentro, a ocupar a maior, e melhor parte, do nosso espaço público. Tudo era pensado e construído em função do “carro”. Asfaltámos e cimentámos a cidade, agredimos os nossos idosos e deficientes, proibimos as crianças de usar a cidade, fechámo-las em casa em frente a écrans que as tornaram míopes e imbecilizadas. Que coisa tão estranha, a cidade que tínhamos há dez anos.
Os “carros”, com as suas estradas e toda a sinistralidade que causavam, foram responsáveis por uma parte daquela imensa dívida externa que ainda estamos a pagar, desde que a Troika aterrou na Praça do Comércio (lembram-se? A Troika dos nossos credores – com um nome tão carinhoso, o de uma carruagem com skis puxada por três burros).
Andar a pé em 2011 era um perigo, até porque as pessoas achavam normal – tão normal como cuspir para o chão ou dizer “Água vai!” – estacionar sobre os passeios e obrigar os concidadãos a circular pela “rua”. Havia “passadeiras” (frequentemente ocupadas por “carros” estacionados), para onde éramos encaminhados, porque era preciso – pensávamos nós – manter constante o fluxo automóvel e “disciplinar” os peões. E havia semáforos, e um software primário a que chamávamos Gertrude, que “regulava” centralmente o trânsito automóvel da cidade, isto é, que nos impelia a conduzir os “carros” a velocidades
que – pasme-se – atingiam os 120 km/h.
E depois, para além da Lei permitir toda esta selvajaria, ainda havia quem se considerasse estar acima dela. Houve até um caso, que na altura passou por uma quase normalidade, de um magistrado que chocou contra o “carro” do presidente da Assembleia da República, quando na Av. da Liberdade (sim, na altura também estava asfaltada!) circulava a 130km/h (!!!) sem respeitar os “sinais vermelhos”, a uma hora a que costumávamos chamar “de ponta” (não, não é o que estão a pensar! Chamava-se “de ponta”, porque era quando havia mais “carros” por todo o lado).
Quando conto estas coisas estranhas aos meus filhos e netos, eles não querem acreditar. “Atirar dejectos para a rua? Escarrar para o chão? Guiar a mais de 30 km/h e estacionar no passeio?” Como as coisas da urbanidade mudam ao longo dos tempos.
Manuel João Ramos
Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados / ACA-M
Etiquetas: ACA-M, CML, Lisboa, MJR, Mobilidade, Urbanidade
1 Comments:
Enquanto escrevo este comentário, ainda ostento o sorriso que este texto me colocou nos lábios.
Valeu a pena ler e sonhar.
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