A democracia sob escuta
Por Baptista-Bastos
AO QUE PARECE andam por aí a escutar-nos. E, anteontem, o DN publicou as inquietações de algumas pessoas, umas conhecidas, outras nem assim, sobre tão respeitável problema. Creio que todos nós, de um modo ou de outro, escutámos um clique suspeito no nosso telefone. Houve quem vociferasse impropérios e obscenidades, e quem se resignasse com a displicência aprendida no conceito segundo o qual não há nada a fazer. Nos dois casos, o Governo era sempre desconfiável. A PIDE varejava-nos com eficácia e tenacidade. Mas o País estava moralmente enfermo. Sabe-se que cerca de quatro milhões de portugueses estavam com ficha na polícia política; e, segundo fontes fidedignas, mais de quatro mil portugueses eram informadores.
Pasma-se como isto foi possível. Mas foi. E o clique telefónico que, ocasionalmente, continua a ouvir-se resulta desses comportamentos, afinal estruturados, que permitem todas as nossas desconfiadas conjecturas.
É muito difícil construir-se a democracia sem serviço de informações. Como é difícil aceitar esse serviço de ânimo leve, sobretudo os que, como nós, portugueses, fomos marcados por três séculos de Inquisição, pelos "moscas" do Pina Manique e pela polícia política de Salazar. Adicione-se o facto de possuirmos características de coscuvilheiros e de a inveja fazer parte da nossa condição. O medo e a desconfiança coabitam connosco. Fome, miséria, desemprego, velhice sem segurança, juventude privada de futuro, eis o que nos deixa sem salvação social, cívica e moral.
Haverá falta de legitimidade quando nos escutam? Dizem que não, e que as leis nos protegem. Mas tudo isto apresenta-se, agora, com traços fraudulentos. E as notícias recentes, se exprimem um certo culto da subjectividade, não deixam de constituir aquilo que Jean-Pierre Le Goff chamou a "barbárie melíflua" (La Democratie post-totalitaire). O poder, em Portugal, sempre foi paternalista, e encarrega-se, ele próprio, de assegurar o que devemos ser e velar sobre como devemos estar. Quando Passos Coelho declara que não vai enviar ao Parlamento o resultado do inquérito às fugas de informação e às escutas, sob o pretexto do "segredo de Estado", a figura do poder e o desprezo pela democracia revelam-se sem dissimulação.
A criação de uma democracia fictícia encontra-se no vocabulário e na construção do discurso governamental. Não só neste: em todos. E as noções empregues definem-se pela ambiguidade. Há dias, na SIC Notícias, Ângelo Correia esclareceu, com ironia, que, quando os inquéritos são longos e rigorosos, prolongam-se sem conclusões, e quando são rápidos e lestos não chegam a conclusões nenhumas. Não há melhor explicação do real circundante. O pior é que está a solidificar-se a cultura da indiferença, filha da ideologia da negligência.
«DN» de 31 Ago 11AO QUE PARECE andam por aí a escutar-nos. E, anteontem, o DN publicou as inquietações de algumas pessoas, umas conhecidas, outras nem assim, sobre tão respeitável problema. Creio que todos nós, de um modo ou de outro, escutámos um clique suspeito no nosso telefone. Houve quem vociferasse impropérios e obscenidades, e quem se resignasse com a displicência aprendida no conceito segundo o qual não há nada a fazer. Nos dois casos, o Governo era sempre desconfiável. A PIDE varejava-nos com eficácia e tenacidade. Mas o País estava moralmente enfermo. Sabe-se que cerca de quatro milhões de portugueses estavam com ficha na polícia política; e, segundo fontes fidedignas, mais de quatro mil portugueses eram informadores.
Pasma-se como isto foi possível. Mas foi. E o clique telefónico que, ocasionalmente, continua a ouvir-se resulta desses comportamentos, afinal estruturados, que permitem todas as nossas desconfiadas conjecturas.
É muito difícil construir-se a democracia sem serviço de informações. Como é difícil aceitar esse serviço de ânimo leve, sobretudo os que, como nós, portugueses, fomos marcados por três séculos de Inquisição, pelos "moscas" do Pina Manique e pela polícia política de Salazar. Adicione-se o facto de possuirmos características de coscuvilheiros e de a inveja fazer parte da nossa condição. O medo e a desconfiança coabitam connosco. Fome, miséria, desemprego, velhice sem segurança, juventude privada de futuro, eis o que nos deixa sem salvação social, cívica e moral.
Haverá falta de legitimidade quando nos escutam? Dizem que não, e que as leis nos protegem. Mas tudo isto apresenta-se, agora, com traços fraudulentos. E as notícias recentes, se exprimem um certo culto da subjectividade, não deixam de constituir aquilo que Jean-Pierre Le Goff chamou a "barbárie melíflua" (La Democratie post-totalitaire). O poder, em Portugal, sempre foi paternalista, e encarrega-se, ele próprio, de assegurar o que devemos ser e velar sobre como devemos estar. Quando Passos Coelho declara que não vai enviar ao Parlamento o resultado do inquérito às fugas de informação e às escutas, sob o pretexto do "segredo de Estado", a figura do poder e o desprezo pela democracia revelam-se sem dissimulação.
A criação de uma democracia fictícia encontra-se no vocabulário e na construção do discurso governamental. Não só neste: em todos. E as noções empregues definem-se pela ambiguidade. Há dias, na SIC Notícias, Ângelo Correia esclareceu, com ironia, que, quando os inquéritos são longos e rigorosos, prolongam-se sem conclusões, e quando são rápidos e lestos não chegam a conclusões nenhumas. Não há melhor explicação do real circundante. O pior é que está a solidificar-se a cultura da indiferença, filha da ideologia da negligência.
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