A letra escarlate
Por Manuel António Pina
QUIS o acaso objectivo que o debate na AR de uma petição da chamada
Federação Portuguesa pela Vida tenha sido marcado para dias antes da
data de nascimento de Calvino. E a Fé Reformada que anima hoje a
desamparada social-democracia que sobrevive no nome do PSD não se fez
rogada à predestinada coincidência.
Por insondável determinação divina (se não do próprio Calvino),
foi a deputada Conceição Ruão a eleita para ser a voz da Verdade Moral
no Parlamento: às mulheres levadas a abortar deve ser imposta a
"obrigatoriedade da assinatura da ecografia da idade do feto"
(pressupõe-se que depois de obrigadas também a olhar longamente a
ecografia repetindo "minha culpa, minha tão grande culpa", enquanto no
sistema áudio do hospital se escutam hinos religiosos e "slogans" da tal
Federação pela Vida). Tudo indica que Deus terá assim querido castigar
as mulheres que abortam com a pior das humilhações: receber lições de
moral do PSD.
Seguir-se-á a letra "A" de "Aborto" bordada a
vermelho no peito, para os mesmos elevados fins morais do "A" de
"Adúltera" do romance de Hawthorne.
Obviamente, a
auto-estigmatização das mulheres defendida pelo PSD aplica-se às que
recorrem ao SNS e a médicos e enfermeiros pagos a 4 euros à hora (na sua
grande maioria, segundo as estatísticas, trabalhadoras fabris,
camponesas ou desempregadas) e não às que recorrem a médicos privados e
clínicas de luxo.
«JN» de 9 Jul 12 Etiquetas: MAP
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