Um senhor português
Por Baptista-Bastos
HÁ JÁ um bom par d'anos, em Santiago de Compostela, por um entardecer
embatente de calor, um grupo de escritores portugueses falava do sentido
da vida e do absurdo da sua insuficiência. Éramos, aqueles, Óscar
Lopes, José Saramago, Maria Velho da Costa, eu, Francisco Belard, João
de Melo. À memória não me vêm outros, mas talvez fossem mais na roda da
esplanada, e as sombras dos edifícios formavam no cenário um recorte
fantomático. Com o patrocínio da Gulbenkian viajáramos, à cidade
medieval, um grupo expressivo falar das nossas experiências, e escutar o
que os escritores galegos tinham para nos dizer. Foi uma jornada
inesquecível, pela variedade de pessoas, pelas diferentes estéticas e
pela grandeza do enunciado. Recordo-me do êxito estrepitoso de A
Barraca, e de Maria do Céu Guerra, cujo génio, ao interpretar Gil
Vicente, encheu de espanto e admiração o teatro apinhado.
Mas
nesse fim de tarde, nessa esplanada longínqua discreteávamos acerca da
natureza da vida e dos mistérios da morte. Foi quando Óscar Lopes, no
jeito modesto e tímido, sua característica, disse: "O grande simbolista
belga Maurice Maeterlinck escreveu que 'Os vivos são tão estúpidos
quando falam dos mortos!'" Quedou-se em silêncio, mas a natureza da
conversa era facilmente aplicável ao conceito. Uns defendiam a vida para
lá do túmulo, outros não, outros ainda indecisos. A sabedoria tola de
quem nada sabe para além do horizonte visível. E Óscar Lopes
ensinava-nos, com simplicidade extrema, que devíamos duvidar de tudo,
inclusive das nossas certezas mais enraizadas.
Este homem
extraordinário, este português incomum, bondoso, sábio, generoso e
decente, um dos maiores intelectuais europeus, que se foi embora há
dias, com 95 anos, passou a vida a estudar, a interpelar, a
interrogar-se e a pôr em causa todo o conhecimento adquirido, numa
inquietação que o conduzia a outras inquietações e a novos dilemas.
Marxista, comunista, membro do Comité Central do PCP, nunca entendeu a
imposição dos dogmas, e a cedência do espírito às injunções do momento. A
essência do seu percurso não tem igual. O meu amigo Vasco Graça Moura,
num poema belíssimo, "Um Senhor de Matosinhos", traçou-lhe o retrato,
por dentro e por fora. É um dos mais formidáveis textos de admiração da
literatura portuguesa.
Há dias, no DN, Francisco Mangas recordava
uma carta (1978) de Óscar Lopes ao seu companheiro António José
Saraiva: "Estou farto de sofrer dores de cabeça e este mal difuso. No
entanto, acredito que a vida tem um sentido. Acredito, de raiz, nisso.
Nesse aspecto sou religioso e fui-o sempre."
Perguntar aos livros,
aos temas sagrados e à matemática, aos teólogos e aos materialistas,
perguntar à vida o que a vida tentava ocultar. Decifrar os sinais mais
escassos e duvidar, duvidar sempre, até da própria dúvida. Deixou-nos
esse legado.
«DN» de 3 Abr 13 Etiquetas: BB
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