O sindicalista com falta de fé nos seus
Por Ferreira Fernandes
O
FERNANDO, meu amigo de juventude, ganhava a vida a cantar mal. Em
Grenoble, França, ele entrava nos restaurantes e assassinava uma canção
de Brassens. Ao fim, perguntava: "Querem outra?" Gente de bom gosto
implorava: "Surtout, pas!" (Nem pensar!) E ele estendia o chapéu para
que os francos pingassem. "Ou me dás dinheiro, ou..." é um exercício a
que os ingleses chamam blackmail, os americanos racket, os sicilianos
pizzo, estilos diferentes de extorsão iguais à atuação do meu amigo. Só
que a arte do Fernando era também uma lição de etimologia: a palavra
chantagem vem do francês chanter, cantar.
Há dias, Paulo Ralha,
presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, quis mostrar-nos
que o "ou, ou..." podia ser uma aula de análise social. Assustado com a
austeridade, Ralha disse recear que ela diminua a capacidade de
resistência dos homens do fisco. Esses funcionários lidando com
processos de milhões de euros, o sindicalista avisou: "Depauperar
pessoas [os trabalhadores dos impostos] com este poder é sempre um
perigo." É, há quem possa cair na tentação... E cortar salários aos
enfermeiros pode levar algum a envenenar o familiar de um ministro. E um
sargento depauperado pode lançar bombas...
O porém é este: isso, com
crise ou não, será sempre obra dum bandido. Os outros têm um linha, a
que podemos chamar honra, que nunca ultrapassarão. O meu amigo Fernando,
por exemplo, nunca cantou a segunda canção.
«DN» de 11 Mai 13 Etiquetas: autor convidado, F.F
2 Comments:
Um belo texto, com um remate fabuloso. Acabei de lê-lo para a família, no fim do almoço.
Também pensei nisso, o Governo deve ter acautelado para haver exceções na austeridade.
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