Mandela, que me libertou
Ferreira Fernandes
EU SOU um homem branco e sei-o desde criança. Num quintal luandense, um
carregador negro, ferido por uma palavra que eu, miúdo de calções, lhe
dissera, tirou um canivete, cortou-se levemente no braço e mostrou-mo:
"Olha, é igual ao teu." Aprendi. Eu sou aquele que precisou que lhe
mostrassem uma evidência. O bocado da minha vida de que mais gosto é que
depois de mostrada nunca mais esqueci aquela evidência. Fiz amigos,
daqueles que me sorriem na memória, fiz escolhas, daquelas que me
marcaram o destino, em que pesou eu saber que aquela evidência - a
igualdade dos homens - é. É mais do que justa. Simplesmente é, existe.
Como aconteceu a muitos pied-noirs, tive de responder à opção que Camus
definiu ser entre a justiça e a mãe. Escolhi o campo nacionalista
angolano, quando isso não era comum entre os brancos, lutei por ele,
quando era perigoso fazê-lo, tive de me exilar, quando não se sabia por
quanto tempo. Mas, desmentindo o dilema de Camus, nunca me senti contra a
minha mãe (e o meu pai) - nem quando a história lhes tirou a terra que
era deles. Na verdade, sobre a questão política fundamental que se me
pôs na vida, a independência de Angola, eu não podia ser outra coisa
senão aquilo que o pequeno fio de sangue de um carregador negro me
mostrou. Apetece-me dizer isto hoje porque a minha vida só faz sentido
porque houve um líder como Nelson Mandela. Sem ele eu sentir-me-ia
abusado, dano colateral, mexilhão. E não, não sou.
«DN» de 27 Jun 13 Etiquetas: autor convidado, F.F
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