O Gageiro da nossa História
Por Baptista-Bastos
Um
programador insensível e néscio fez projectar, para domingo último, às
22 e 20, no segundo canal da RTP, um admirável documentário de
António-Pedro Vasconcelos sobre Eduardo Gageiro. Nesse mesmo tempo, a
SIC exibia os Globos de Ouro, e comentadores preocupados discreteavam,
filosoficamente, sobre a Taça de Portugal. Para quem ignora, para quem
não quer saber, para os ressentidos e despeitados, Eduardo Gageiro é um
dos maiores repórteres-fotográficos do mundo, cuja sensibilidade vive a
par de um carácter amiúde combativo porque decente e asseado.
António-Pedro viu muito bem a natureza rara deste grande artista, e
conseguiu pô-lo a falar com límpida transparência, fornecendo-nos, e
outros deponentes, a grandeza de um homem que, através da fotografia,
tem revelado, como nenhum outro, a História de Portugal das seis últimas
décadas. E que História! Eis a dor, o sofrimento, a fome e a miséria, a
morte sem remorso nem remissa de um povo amado, comovidamente amado,
por uma câmara que escolhe, selecciona, toma partido nítido e sem
reserva pelos pés-descalços. É o Portugal que há, a pátria que temos e
que Gageiro, com muitos mais, quis transformar. Tristemente, no final do
documentário, diz: e chegámos a isto! O encontro de Vasconcelos com
Gageiro é um momento extraordinário da nossa vida moral e cultural. O
cineasta, não o esqueçamos!, é um intelectual extremamente culto
(stendhaliano de mão diurna e mão nocturna), e as relações que
estabelece entre a obra de Gageiro e a literatura e o cinema não são
inócuas. Por exemplo: na parte final, quando o fotógrafo fala da doença
que o assaltou e das imagens palustres que fixou, como se dissesse adeus
à vida, as semelhanças entre o Tarkovsi de "Nostalghia" não são
referências fortuitas. Essa correspondência faz parte de toda a obra de
António-Pedro, e recordou-me o belíssimo documento que filmou, há muitos
anos, sobre Lopes-Graça, ou o "Jaime", o melhor filme português de
infância já realizado em Portugal; ou o "Aqui d"El Rei!", cuja discreta
ironia passou, lamentavelmente, despercebida.
"Eduardo Gageiro: Um
Século Ilustrado" era para ser exibido em 25 de Abril, e condizia com
um projecto de documentários sobre portugueses ilustres, que
António-Pedro se propusera realizar. Ficou no cesto. Os donos dos nossos
destinos preferem a aldeia endomingada, com Nossa Senhora a protegê-la
da insídia dos que pensam, do que os sobressaltos da imaginação dos que
opõem a razão e o talento à treva.
Mas o que importa é que
continua a haver pessoas como o Gageiro e o António-Pedro, mais alguns
outros, que enfrentam os adamastores de todos os medos. A memória faz
parte desse combate. E este documentário faz parte dessa memória. Ao
falar de Gageiro, António-Pedro fala de Portugal.
«DN» de 21 Mai 14 Etiquetas: BB
1 Comments:
os fotógrafos alimentam-se de outros seres humanos, sem pedir licença. e sobre esse pecado constroem a sua obra, que nunca dividem com os verdadeiros artistas...
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