21.5.14

O Gageiro da nossa História

Por Baptista-Bastos
Um programador insensível e néscio fez projectar, para domingo último, às 22 e 20, no segundo canal da RTP, um admirável documentário de António-Pedro Vasconcelos sobre Eduardo Gageiro. Nesse mesmo tempo, a SIC exibia os Globos de Ouro, e comentadores preocupados discreteavam, filosoficamente, sobre a Taça de Portugal. Para quem ignora, para quem não quer saber, para os ressentidos e despeitados, Eduardo Gageiro é um dos maiores repórteres-fotográficos do mundo, cuja sensibilidade vive a par de um carácter amiúde combativo porque decente e asseado. António-Pedro viu muito bem a natureza rara deste grande artista, e conseguiu pô-lo a falar com límpida transparência, fornecendo-nos, e outros deponentes, a grandeza de um homem que, através da fotografia, tem revelado, como nenhum outro, a História de Portugal das seis últimas décadas. E que História! Eis a dor, o sofrimento, a fome e a miséria, a morte sem remorso nem remissa de um povo amado, comovidamente amado, por uma câmara que escolhe, selecciona, toma partido nítido e sem reserva pelos pés-descalços. É o Portugal que há, a pátria que temos e que Gageiro, com muitos mais, quis transformar. Tristemente, no final do documentário, diz: e chegámos a isto! O encontro de Vasconcelos com Gageiro é um momento extraordinário da nossa vida moral e cultural. O cineasta, não o esqueçamos!, é um intelectual extremamente culto (stendhaliano de mão diurna e mão nocturna), e as relações que estabelece entre a obra de Gageiro e a literatura e o cinema não são inócuas. Por exemplo: na parte final, quando o fotógrafo fala da doença que o assaltou e das imagens palustres que fixou, como se dissesse adeus à vida, as semelhanças entre o Tarkovsi de "Nostalghia" não são referências fortuitas. Essa correspondência faz parte de toda a obra de António-Pedro, e recordou-me o belíssimo documento que filmou, há muitos anos, sobre Lopes-Graça, ou o "Jaime", o melhor filme português de infância já realizado em Portugal; ou o "Aqui d"El Rei!", cuja discreta ironia passou, lamentavelmente, despercebida.
"Eduardo Gageiro: Um Século Ilustrado" era para ser exibido em 25 de Abril, e condizia com um projecto de documentários sobre portugueses ilustres, que António-Pedro se propusera realizar. Ficou no cesto. Os donos dos nossos destinos preferem a aldeia endomingada, com Nossa Senhora a protegê-la da insídia dos que pensam, do que os sobressaltos da imaginação dos que opõem a razão e o talento à treva.
Mas o que importa é que continua a haver pessoas como o Gageiro e o António-Pedro, mais alguns outros, que enfrentam os adamastores de todos os medos. A memória faz parte desse combate. E este documentário faz parte dessa memória. Ao falar de Gageiro, António-Pedro fala de Portugal.
«DN» de 21 Mai 14

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1 Comments:

Blogger brites said...


os fotógrafos alimentam-se de outros seres humanos, sem pedir licença. e sobre esse pecado constroem a sua obra, que nunca dividem com os verdadeiros artistas...

21 de maio de 2014 às 11:13  

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