O futuro dos meus netos
Por Maria Filomena Mónica
QUANDO OLHO o rosto melancólico da
Rita, a alegria espontânea da Joana ou os olhos marotos do Miguel, dou por mim
a imaginar se os tempos que os esperam serão melhores ou piores do que aqueles
que conheci, eu, nascida em plena guerra mundial, num país tão pobre que nem
dávamos pela fome a nosso lado, num mundo tão fechado que as aldeias nem precisavam
de muralhas para encerrar os horizontes dos seus habitantes.
Os dias estão sombrios e é fácil
entregarmo-nos às delícias da auto-flagelação. Mas não nos deveríamos orgulhar,
nós, aqueles que nos entusiasmámos com a Revolução de 1974, do que legámos aos
nossos filhos e netos? A liberdade política, a abertura do país à Europa e a
redução da miséria não são coisas menores. É verdade que todos os dias me
queixo, esquecendo que vim de uma noite tão escura que me parece irreal.
Não é popular dizê-lo, mas a minha
geração devia orgulhar-se do que fez. Não custa imaginar que o desaparecimento
de um Império, o fim de um regime autocrático e a existência de um partido
comunista cujo estalinismo era único na Europa democrática pudessem ter
conduzido a tumultos mais graves do aqueles a que assistimos. Hoje, ainda há
corrupção, mas não mais do que nalguns países europeus; ainda há desigualdades
sociais, mas nada que se compare à dos anos 1960; há partidos
descredibilizados, mas não temos uma polícia política, nem uma censura, nem
deportamos gente para o Tarrafal. As Universidades são más, mas não piores do
que aquela que frequentei. O analfabetismo desapareceu e a taxa da mortalidade
infantil colocou-nos num lugar de que nos podemos orgulhar. Portugal mudou e
mudou para melhor.
Há dias, perguntei à minha
fisioterapeuta, uma rapariga de 30 anos, se a avó dela, uma camponesa pobre de
Viseu, teria sido mais ou menos feliz do que ela. Sem hesitar, disse-me: «Mais,
e sabe porquê? Ela nunca saiu da aldeia onde nasceu, não tinha expectativas,
contentava-se com o que a terra lhe dava; ora, eu quero doutorar-me, sei que
posso ter uma vida melhor se voltar para a Suíça, onde fiz o ensino secundário
até o meu pai, que para ali emigrara como pedreiro, ter tido um acidente.»
Sorrindo, acrescentou: «Sim, eu quero subir na vida e é por isso que sofro mais
do que a minha avó».
Muito poderia ter sido feito de
forma mais justa e eficiente, mas isso não nos deve levar a menosprezar o que
conseguimos, de que há a destacar o Serviço Nacional de Saúde, que salvou da
morte a minha neta Joana, que acompanhou a minha mãe até aos últimos dias e que
agora se ocupa de mim. É importante lembrar isto num momento em que tudo, à
nossa, e à minha, volta parece ruir. Não podemos cruzar os braços, desistindo
de tentar fazer mais e melhor.
Ao pensar que posso não viver
muitos mais anos, quero acreditar que o futuro não será menos doce só porque
parti. Os meus netos ficarão por cá, guardiões, segundo espero, dos valores em
que acredito e nos quais foram criados. O futuro é deles. E é por consideração
por eles que, embora existam razões, não me entrego ao pessimismo. Tenho a
certeza de que cada um à sua maneira saberão escolher o seu caminho.
«Expresso» de 1 Nov 14
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2 Comments:
Sim, há (muitas) coisas muito melhores do que há meio século. Muitíssimo melhores. Das que são referidas só tenho dúvidas acerca do analfabetismo, que me parece longe de desaparecer, e chego a temer que possa voltar a aumentar...
E contudo, o pessimismo vai alastrando, alastrando...
Naturalmente, a opção só pode ser a luta tenaz, sem desistência. Corajosamente.
Mas também eu, em momentos de maior tristeza e raiva, preciso que me lembrem disso.
Obrigado.
"(...) É importante lembrar isto num momento em que tudo, à nossa, e à minha, volta parece ruir.
(...)E é por consideração por eles que, embora existam razões, não me entrego ao pessimismo. Tenho a certeza de que cada um à sua maneira saberão escolher o seu caminho."
Para uma DOUTORA de OXFORD, o português anda muito esquecido.
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