26.11.17

Sem emenda - Os escravos em Portugal: Um Memorial

Por António Barreto
Excelente ideia a da construção de um memorial situado à beira Tejo, entre a Ribeira das Naus e o Campo das Cebolas, locais onde, segundo consta, o tráfico de escravos tinha assento. Não se sabe se a proposta, feita por uma associação, será aprovada e concretizada. Nem qual será a sua forma ou configuração. Mas a ideia é boa. Sobretudo se for mais do que um memorial passivo e inerte. Se for um museu, um local de reflexão ou um centro de referência. Várias instituições desse género, nos Estados Unidos, em Inglaterra, na Holanda, em Angola e no Senegal, mostram como se pode fazer. Genocídios, holocaustos, massacres, autos-de-fé, deportações violentas, assassinatos em massa, Goulag, campos de concentração e outras formas de exercício de poder e violência devem ser estudados. Para que não se esqueça. Espera-se, aliás, que esta iniciativa tenha melhor sorte do que um projecto de lei de criação de um Museu dos Descobrimentos, a construir na Cordoaria, apresentado há mais de trinta anos e, infelizmente, nunca realizado.
O tráfico de escravos e a escravatura foram, à luz do que somos hoje, fenómenos horrendos que a humanidade conheceu, durante séculos e em quase todas as latitudes. Da Índia à China, do Egipto à Mesopotâmia, de Roma a Berlim, de Lisboa ao Rio de Janeiro e da Costa do Marfim aos Estados Unidos. Centenas de milhões de escravos foram vendidos, comprados e transportados entre continentes e em várias direcções, conforme as geografias. Para estes fluxos de mercadoria humana, Portugal também contribuiu de modo significativo, com especial incidência no tráfico estabelecido entre África e as Américas. Terá mesmo sido, no Atlântico e durante três ou quatro séculos, um dos seus protagonistas e principais beneficiários.
Em poucas palavras, a escravatura e o tráfico de escravos marcaram tempos e povos. Ainda hoje, em certos países africanos ou muçulmanos, há práticas, legais ou não, equiparadas à escravatura. Provavelmente, foi a África o continente que forneceu mais escravos. Segundo os valores morais contemporâneos, o tráfico está mesmo entre os piores traços da evolução da humanidade. Juntamente com os trabalhos forçados, a tortura, o assassinato, o genocídio e a conquista, a escravatura foi mais um capítulo da história que o progresso combateu durante décadas e para o qual foi conseguindo remédios, interdições, castigos e sobretudo condenação moral e jurídica.
O processo histórico foi tal, até ao presente, que a escravatura se encontra erradicada em grande parte do mundo. Na maior parte do mundo, talvez seja possível afirmar. A libertação dos escravos, a abolição da escravatura e a emancipação dos servos e escravos transformaram-se mesmo em objectivos centrais dos defensores do progresso e do melhoramento dos povos. A abolição da escravatura está a par de outros grandes movimentos da humanidade como os direitos humanos e a igualdade. Tal como a democracia, a cidadania e a liberdade religiosa, a escravatura e a respectiva abolição merecem um memorial.
Se for, evidentemente, um memorial que explique, que dê contexto e enquadramento, que informe, que nos ajude a compreender. Não um memorial que se limite a condenar os negreiros e os Portugueses… Não um memorial de autoflagelação que, por razões de oportunismo histórico e demagogia política, pretenda afirmar que o colonialismo dos Portugueses foi mais cruel do que o dos outros, que o racismo dos Portugueses é pior do que o dos outros, que a escravatura dos Portugueses foi mais hedionda do que a dos outros, que a escravatura organizada pelos europeus e pelos brancos foi mais dolorosa do que a dos Árabes, dos Chineses, dos Indianos ou dos Africanos… 
E também não um memorial que, conforme sugerido por alguns proponentes, terá de ser feito por artistas africanos ou descendentes de africanos… Isso é racismo! Puro e simples!

DN, 26 de Novembro de 2017

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3 Comments:

Blogger SLGS said...

Como sempre, Senhor Professor, muito lúcido no que nos expõe.
Em meu entender, um local óptimo para um Memorial desta natureza, teria sido a Casa dos Bicos mas, como sempre, perdeu-se a oportunidade. E de que maneira!

26 de novembro de 2017 às 16:08  
Blogger José Batista said...

Muito bem.
Face a alguns escritos (inaceitáveis) que (também) tenho lido, enalteço sobretudo os dois últimos parágrafos do texto.

27 de novembro de 2017 às 23:01  
Blogger Ilha da lua said...

Enquanto nos preparamos para construir um memorial sobre a escravatura,é noticiado que na Líbia são leiloados para escravos, imigrantes africanos,por aproximadamente 330 euros..A escravatura,infelizmente ,num mundo, que cada vez mais,gira a duas velocidades,não é só uma má memória,continua a ser um horrendo problema da nossa época

28 de novembro de 2017 às 13:26  

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