25.5.18

Saudades do Henrique

Por Joaquim Letria
 Numa destas noites, a TVI convidou-me a ir ao jornal das 20 horas por ser o último que o Henrique Garcia apresentava. Naturalmente que só por este motivo eu iria.
Foi uma espécie de festa em que além de darem uma taça ao Henrique puseram uma série de depoimentos gravados, que não pude ouvir por já estar dentro do estúdio, e depois ao vivo perguntaram ao Henrique por que razão eu estava ali.
O Henrique disse que era por ser o culpado de tudo e se não fosse eu ele ainda estava na rádio. Nos 30 segundos que fizeram o favor de me conceder, só pude dizer que estava ali para prestar a honra que o Henrique merecia e para lhe render a homenagem devida e dizer-lhe que não desistisse, pois a Carmen Maura começou a carreira aos 70 e hoje é a diva do Pedro Almodôvar e do cinema espanhol e o Saramago andava por essa idade quando se meteu seriamente a escrever livros e acabou com um Nobel.
Resultado: se alguém ouviu o que o Henrique e eu dissemos um ao outro, não percebeu nada. Mas ambos havíamos cumprido o ritual da actual TV, que é cada vez mais o de nos mostrar como bonecos num espectáculo de D. Robertos. Por graça, costumo dizer aos meus amigos que me vêem na TV mas nunca sabem o que eu estava a dizer, que hoje é fácil fazer boa figura nas televisões — basta não meter o dedo no nariz e não ter a breguilha aberta.
Deixem-me então explicar porque era eu o culpado daquilo tudo e porque merecia o Henrique que eu tivesse ido a mata-cavalos para a bonita festa de Queluz.
Em 1975, o Sr. Igrejas Caeiro convidou-me a fazer um programa no Primeiro Programa da RDP. Ainda não havia antenas disto e daquilo e o Primeiro Programa era a Rádio de luxo e prestígio da nossa rádio nacional, aberração que resultara da fusão de todas as outras, desde a Emissora Nacional às rádios minhocas e emissores associados de Lisboa. Aquele colosso era então dirigido por aquela figura de referência, nosso querido “companheiro da alegria”. Só a Rádio Renascença, da Igreja católica, escapara à fúria da nacionalização abrilista.
Propus um programa das 11 da manhã à 1 da tarde de domingo, chamado “O Dito e o Feito”, com reportagens, comentários e críticas que viria a ter um êxito retumbante. Indispensável à classe política, mas extremamente popular e independente. Nas minhas negociações pedira três colaboradores para as diversas funções e foram-me atribuídos três jovens de grande talento radiofónico. Um deles chamava-se Henrique Garcia e vinha da Rádio Universidade. Foi assim que o conheci.
Em 1978, já eu fizera e abandonara o semanário “O Jornal”, passara meses no Iraque e trabalhara na agência ANOP, o meu amigo Fernando Lopes, o cineasta, convida-me a regressar à RTP para fazermos o novo segundo canal da RTP. O Director de Informação era o Hernâni Santos, velho companheiro da BBC em Londres que eu substituiria mais tarde.
 “Oh pá, quem para apresentar os jornais?” E eu, a fazer o Tal & Qual e um programa de actualidade chamado “A Par e Passo”, nem hesitei: António Mega Ferreira com toda a sua elegância, cultura e “savoir faire”, que comigo fizera parte dos Projectos Especiais da ANOP,  juntamente com  Helena Vaz da Silva e  Antónia Palla; José Júdice vindo da BBC, um sarcástico com muita graça na apresentação de notícias; Dina Aguiar que também conhecera na rádio e o Henrique Garcia. Estes dois últimos foram problemáticos por razões que eu julgara estarem democraticamente resolvidas: constava que ambos tinham sido da UEC (União dos Estudantes Comunistas)…
A sua admissão foi difícil e acabou por ter o empenho do Hernâni Santos, do Fernando Lopes e de mim próprio até conquistarmos a condescendência do presidente da RTP, João Soares Louro. O Henrique só eu conhecia e lembro-me de ter dito que o Henrique era melhor do que o Carlos Cruz. A Dina Aguiar ainda está aí a dar cartas, e bem, não me deixa mentir.
Não era exagero, a qualidade que atribuí ao Henrique, com todo o respeito pelo talento e profissionalismo do Carlos Cruz. Mas já na Rádio cedo eu vira no Henrique Garcia a presença, segurança e confiança que só os “âncoras” têm, pelo que eu aprendera com os mestres ingleses e americanos. E âncoras são raros. Há senhores muito apessoados e bem vestidos a lerem muito bem notícias. Mas nada disso é  um âncora e por isso o Henrique é único. Recordo-me só de dois âncoras na TV portuguesa. Antes do 25 de Abril, o Senhor Pedro Moutinho, nos dias de hoje, o Henrique Garcia.
Por isso, pôr o Henrique a ler notícias à meia noite nos fins de semana dum canal subalterno, anos a fio, só por má fé ou ignorância. Tal como escrever-lhe uma carta com duas linhas e meia a dizer ”Por ter atingido os 70 anos de idade, o seu contrato cessa no dia 30” só por má fé ou ignorância para lá duma grande falta de educação. Por isso, fui a Queluz recordar com ele  todas as nossas guerras, incluindo a aventura da Radiogest.
Um âncora lê notícias, fala do país, de pessoas e do mundo. O público acredita e tem confiança naquela pessoa. Espero voltar a ver isso com o Henrique num canal qualquer que queira fazer mais do que mostrar gente com a breguilha fechada e sem meter o dedo no nariz. E depressa, antes  que os Iphones e os computadores arrumem a questão de vez.
Henrique, tenho saudades tuas.

Publicado no Minho Digital

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1 Comments:

Blogger José Batista said...

Bonito e bom de ler. Especialmente nos tempos que correm.

27 de maio de 2018 às 22:20  

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