27.5.18

Sem emenda - O Socialismo português

Por António Barreto
O socialismo português é coisa que não existe. E ainda bem. Se existisse, seria qualquer coisa má, como o soviético, ou risível, como o venezuelano. Existem, isso sim, socialistas. E um partido que faz anos, 45, dirige o actual governo e está em congresso. Já se sabe que só vai discutir o futuro, não o que está para trás. Não se vai falar de Sócrates, muito menos do seu governo, que nunca existiram. Não se vai debater a corrupção, obra da direita ou de gente que não existiu. Vai falar-se de grandes problemas, de questões de estratégia a longo prazo e do futuro, entidades com as quais se reduz qualquer congresso à insignificância litúrgica. As tentativas (e vai haver algumas) de debater problemas reais produzirão efeitos às duas da manhã numa sala vazia. Mais uma vez se verá como a separação entre eleição e debate foi, para a maior parte dos partidos, solução para esvaziar os congressos e entronizar a demagogia.
No século passado, houve quem julgasse que existia um socialismo português. Uns tantos militantes, alguns militares e pouco mais. Foi-se aprendendo que o melhor socialismo era o adjectivo, não o substantivo. Este é um despotismo, aquele é uma inspiração. Curiosamente, com as crises na globalização, no euro e na União, o substantivo voltou a estimular alguns espíritos. Isso também aconteceu no PS, por causa dos aliados de esquerda que tão bem fizeram ao PS e que tão mal se preparam para lhe fazer. Só que já se percebeu que o debate sobre o socialismo em Portugal é conversa para entreter congressistas.
De qualquer modo, é verdade que o PS está num momento excepcional da sua vida. O PS vai refazer a sua identidade e definir o seu papel na sociedade. Na verdade, hoje, o PS existe por um acaso estatístico e um golpe de sorte irrepetível. Não fora o período de austeridade, talvez o PS não fosse hoje mais do que uma colecção de cromos. Aqueles quatro anos criaram um descontentamento de que o PS teve a sorte de beneficiar.
O que será, então, o PS do futuro? Para que servirá? Como resistente ao fascismo, trave mestra do pensamento da esquerda, já fez o que pôde, mas nem sequer foi o principal. Já a resistência ao comunismo fez a sua glória, em Portugal e na Europa, foram os anos de ouro. É a sua principal identidade histórica, mas não haverá, felizmente, segunda oportunidade. Fundador da democracia, com certeza, mas não foi o único. Responsável pela integração europeia, sem qualquer dúvida, mas não esteve sozinho. Foi co-autor do Serviço Nacional de Saúde, teve o talento de ter feito a primeira lei, mas o desenvolvimento foi obra de vários. Na criação de riqueza, a sua autoria é quase nula. Já no endividamento, a sua responsabilidade é maior. Reformas da educação e da segurança social: para o bem e o mal, andou por lá, sem originalidade, foram muitos os autores. Na justiça, o seu envolvimento foi profundo, mas inútil, quem sabe se nefasto. No combate à desigualdade, na descentralização, nas autonomias regionais, nas privatizações, nas revisões da Constituição, no euro, nas auto-estradas e nas parceiras público privadas, o PS esteve em todas, no melhor e no pior, no activismo e na inutilidade, com outros, sem marcas especiais nem currículo digno desse nome.
As promessas que o PS vai deixar no fim deste congresso são conhecidas e pertencem à galeria dos lugares comuns imortais. Igualdade social, de géneros, de etnias e de origens! Segurança! Descentralização! A cultura! O mar! Estamos conversados. Onde o esclarecimento falta é naquela que poderia ser a mais profunda marca do PS nas próximas décadas: a luta contra a corrupção! Contra os negócios de Estado, os favores e o nepotismo. Contra as cunhas e a promiscuidade. Contra a ocupação partidária do Estado. Contra a dependência dos plutocratas e dos sindicatos.
Com o seu currículo recente, é difícil imaginar um PS capaz de corrigir as causas da corrupção e de barrar os caminhos que a ela conduzem. Mais uma razão para fazer desse desígnio o mais importante do seu futuro próximo. Com liberdade e justiça, é aquilo de que Portugal mais precisa.

DN, 27 de Maio de 2018

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