MILAGRE, SABE-SE LÁ
Por Joaquim Letria
De há uns
tempos para cá que ninguém fala, dá conta ou se maravilha com milagres. Muito
menos se estes acontecem num fim de semana ou coincidem com os destemperos
futebolísticos que tanto entretêm a nossa querida Comunicação Social. Foi o
caso deste que, tarde e a más horas, vos dou conta, penitenciando-me pelo
atraso, embora hoje, estando eu longe dos media, me possam ser relevados
os “deadlines” ultrapassados.
Então foi
assim: no sábado em que o Real Madrid conquistou a sua 13ª liga dos Campeões da
Europa, derrotando um Liverpool de choroso guarda-redes, muito infeliz nos
lances de golo consentidos, uma refugiada procedente da Líbia deu à luz um
robusto rapaz de dois quilos e oitocentos em pleno Mediterrâneo a quem pôs o
nome de Milagre.
O Mundo a que o
rapaz chegava encontrava-se concentrado no que acontecia no final da Champions, e assim continuaria até também ter de se preocupar com o futuro de Cristiano
Ronaldo. Mas naquele momento em que Milagre dava os seus primeiros vagidos nós
víamos comovidos o guarda-redes do Liverpool chorar enquanto pedia perdão aos
adeptos que generosa e desportivamente lhe perdoavam, aplaudindo-o no estádio.
Entretanto, a
bordo do “Aquarius” , o barco de busca e resgate da “SOS
Mediterrâneo” onde a mãe acabava de parir, tudo decorria normalmente e
todos festejavam o feliz desenlace, embora ninguém se preocupasse com o futuro
da mãe e nascituro neste nosso estranho mundo. É evidente que também aqui o
importante é o instante e o imediato, a vida pode esperar.
Imaginemos
agora, em plena especulação, que esta criança vai ser um artista de valor
mundial, um cientista com importantes descobertas para a humanidade, um
matemático que descobre o teorema da verdade, o paradigma da justiça e consegue encontrar a verdadeira equação da felicidade!?
Sabe-se lá! Desconhecemos o verdadeiro
desperdício de vida e de futuro nas crianças armazenadas em campos, exploradas
na apanha do lixo, exploradas no tráfico humano, a morrerem de fome em África e
vítimas da guerra um pouco por toda a parte. Diria que não sabemos nem queremos
saber porque o que nos preocupa é a infelicidade do guarda-redes do Liverpool e
o futuro do Cristiano Ronaldo. O resto, logo se vê.
Publicado no Minho Digital
Etiquetas: JL
2 Comments:
Não podia estar mais de acordo com o que escreveu.O último parágrafo faz doer...
Muito revelador da alma humana.
De forma comovente e magistral.
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