25.7.19

Professores raianos da Beira Alta – Crónica

Por C. Barroco Esperança

(Dedicada ao velho condiscípulo, grande amigo e excelente professor, Alberto Vilhena)

A ditadura pagava mal aos funcionários do Estado, e também exigia pouco ao ensino público. Carneiro Pacheco, ministro que transformou o Ministério da Instrução Pública em Ministério da Educação Nacional, dizia, e pensava, que era função da escola ensinar a ler, escrever e contar, saberes mais avançados corrompiam a alma de gente simples, e eram desnecessários. Salazar, ele próprio, respondeu a Carvalhão Duarte, presidente da União dos Professores Primários, antes da dissolução das associações e da proibição dos sindicatos, que sabia que os professores não ganhavam de acordo com a categoria, mas, não podendo aumentá-los, faria com que a categoria ficasse de acordo com a remuneração. Depois do cinismo, veio a extinção das Escolas Normais.
Muitos professores dedicavam-se à agricultura e, em especial, à vinicultura, que dava de comer a um milhão de portugueses, dizia o ditador, e aliviava a sede dos próprios.
Já no 3.º quartel do século XX, o Zé André, largou o curso de Direito para se dedicar ao magistério primário e ao vinho, voltando à terra natal. Entrava na escola com o garrafão atestado e saía com ele vazio. Certo dia, um inspetor, de visita à sua escola, em Vale de Espinho, concelho de Sabugal, aludiu ao garrafão de 5 litros que jazia sob a secretária, e o Zé André desculpou-se por não lhe ter oferecido uns goles, facilmente, se necessário, mandaria um aluno revezá-lo.
A esse colega perdi-o de vista no início da década de sessenta e por lá deve ter morrido com o fígado desfeito ou conservado em álcool.
Hoje lembrei-me de professores do concelho de Almeida que nasceram no século XIX e ainda conheci.
O professor Rodrigues, um velho republicano, era o único a censurar a saudação fascista dos alunos quando entrava nas salas de colegas, depois de se levantarem, a obediência aprendia-se cedo e era usual, com a expressão que o celebrizou, “baixa a pata, burro!”, com laivos pedagógicos impróprios na forma, mas certeiros na substância. Duas netas suas foram minhas colegas na Escola do Magistério da Guarda, e dele guardo apenas o respeito pela coragem de quem tornava audível o repúdio do fascismo.
Os três professores que ora evoco, Abel, Amândio e Peixoto, eram grandes amigos, do peito e do copo. Reuniam-se nos exames da 4.ª classe (2.º grau), a cujos júris presidiam, e, depois de afixadas as pautas, eram os copos que lhes preenchiam as tardes e algumas noites inteiras. O professor Peixoto vinha da Miuzela do Coa e o Amândio da Junça, ficando hospedados na única pensão da vila. O professor Abel dava aulas em Almeida, onde tinha casa junto à escola e amanhava uns terrenos fora das muralhas.
Naquelas duas semanas de exames da 4.ª classe a sede parecia aumentar e o jardim e os seus bancos eram as testemunhas das noites de convívio e da robustez dos estômagos, à prova de azia. Depois, era a despedida e o regresso do professor Amândio à Junça, perto da sede do concelho, e do professor Peixoto à Miuzela, onde matavam a sede com outros amigos ou na pacatez do lar, sem desmerecerem o respeito que as populações lhes tributavam.
O professor Abel lá voltava à faina agrícola, cheio de vigor, de tal modo que uma tarde, ainda lavrava uma courela, com o arado puxado por um macho e um burro, com o sol a extinguir-se no horizonte, quando o burro deu sinais de exaustão. Faltavam dois ou três regos para arrotear a terra quando substituiu o burro na canga ordenando ao criado “toca lá o macho, que eu não preciso”, e assim acabou a faina do dia que se extinguia.
Um dia o pai de um aluno foi perguntar-lhe como ia a aprendizagem do filho, não que o interessasse o aproveitamento escolar, pela falta que lhe fazia na lavoura. Ao contrário das meninas, apenas obrigadas à 3.ª classe, os rapazes tinham de frequentar a escola até fazerem o exame da 4.ª ou atingirem os 14 anos de idade.
O professor Abel disse-lhe que, nesse ano, não contasse que lhe propusesse o filho a exame, é muito fraquinho, não abrange, faz-me muita diferença senhor professor Abel, precisa de mais um ano e, descoroçoado, o pai lá foi, de chapéu na mão, a deitar contas à vida e a pensar na falta que lhe fazia o rapaz, mais um ano, a pensar como acudir aos trabalhos agrícolas e à guarda do gado.
Pouco tempo depois, antes da semeadura das batatas, lembrou-se de oferecer dois carros de estrume ao professor. Disse-lhe que tinha muito, os animais eram um sorvedouro de palha para as camas, mas uma fábrica de fazer estrume, ia oferecer-lhe duas carradas, onde queria que as descarregasse.
Alegrou-se o professor e logo lhe indicou duas propriedades onde as queria, desejo que no dia seguinte foi satisfeito.
Umas semanas mais tarde voltou à escola a repetir a pergunta, como ia o filho, e…, sem terminar, o professor Abel logo lhe respondeu:

- Olha, abriu…!

Coimbra, julho de 2019.

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