22.3.20

Grande Angular - Medo

Por António Barreto
Com certeza que tenho medo. De morrer. Mais ainda, de sofrer. Pior, de perder os que amo. É moda garantir que não temos medo, que não devemos ter medo e que devemos lutar contra o medo. É bem afirmar que vamos vencer, que sairemos desta prova reforçados, que lutaremos com todas as energias e que, no fim, ganharemos. É lugar-comum persistente e enganador que diz que “se não tivermos medo, venceremos o medo”. Pode ficar bem a certas pessoas dizer isso. Mas é enganador. E errado. Não corresponde à verdade e convida à irresponsabilidade. Não ter medo da morte, da sua e da dos seus, é não dar valor à vida.
Ter medo é, muitas vezes, o mecanismo essencial que nos leva a resistir, a organizar a luta e a tomar precauções. A evitar disparates. A correr riscos inúteis. Ter medo é frequentemente o que nos dá coragem para evitar a tragédia e para combater o demónio. Ter medo é o que nos permite, tantas vezes, escapar ao acidente e à catástrofe. Não conheço quem se tenha livrado do perigo ou derrotado o inimigo sem ter medo, justamente diante da ameaça e perante o inimigo. Ter medo é recear sofrer e perceber que existem altas probabilidades de perder familiares, amigos e pessoas que admiramos, além de eu próprio morrer ou sofrer da doença. Ter medo é recear que efeitos colaterais, incompetências, preconceitos e injustiças provoquem ainda mais desastres e dramas na vida das pessoas queridas e da minha comunidade. 
É evidente que ter medo se pode transformar em pânico, em excesso que paralisa e em pavor irracional. Contra esse medo, também teremos de lutar. Mas não vale a pena fazer o discurso que engana e mente, que garante que não temos medo, nem devemos ter medo. Estas tiradas políticas têm sempre qualquer coisa de machista e marialva insuportável. Quem diz não ter medo está geralmente a tremer de terror ou é exibicionista absolutamente irresponsável.
Tenho medo desta doença, como tenho medo da guerra, da violência, do assassino, do torturador, do selvagem, do criminoso, do terramoto, da inundação e do incêndio. E não vejo que haja mal nisso. Ter medo significa amar a vida e as pessoas. Ter medo implica recear perder qualidade e talento, ver desaparecer oportunidades e obras a fazer. Ter medo quer dizer recear perder quem nos faz falta e quem amamos.
Depois das alterações climáticas que mobilizaram as opiniões e as consciências durante anos seguidos e chegaram agora ao seu ponto mais intenso de alarme, não tivemos repouso e apareceu esta nova ameaça, a da doença inexorável e da pandemia aterradora. É provável que a ciência e os cientistas, a medicina e os médicos, os enfermeiros e os cuidadores, acabem por vencer. Antes disso, todavia, os hospitais estarão sobrelotados e os cemitérios cheios.
Ainda por cima, o paradoxo da previsão aterra mais do que tranquiliza. As estatísticas e a matemática quase nos dizem quantos vão morrer, a que ritmo, em que locais e em que países. Este absurdo, que permite saber com antecedência quantos milhões vão ser infectados e quantos milhares vão morrer, não chega para evitar o mal, até porque as previsões já contam com isso mesmo, o facto de se prever, de se lutar contra e de evitar uma parte, mas não tudo. Ao contrário do que se diz, o inimigo não é invisível, sabe-se o que é, onde está, como actua, por onde se propaga e quantas vítimas vai fazer… Invisível é o ataque. E é esse que mata. É contra esse inimigo que as sociedades e as pessoas podem fazer qualquer coisa.
Todos nós temos uma esperança irracional: a de que escaparemos, a de que os nossos poderão salvar-se, a de que uma cura chegará a tempo de travar o desastre, a de que a vacina será inventada antes do fim do ano e que evitará milhões de mortos… Esta esperança ajuda-nos a organizar a vida, a prever, a evitar… Mas sabemos que muitos ficarão para trás.
Também tenho medo do diabo. Que vive no pormenor, como é sabido. As nossas melhores leis perdem diante do real e da vida. As medidas mais sofisticadas são derrotadas pela rotina e pela incompetência. Os sistemas de defesa e os mecanismos de ataque podem ser fenomenais, dispendiosos e sofisticados, mas podem perder tudo por uma luva, uma máscara, um fato de protecção, um ventilador, um reagente, uma seringa e um tubo de ensaio. Os melhores planos podem falhar porque a injustiça social é mais forte e porque a burocracia resiste. Leis maravilhosas no papel falham estrondosamente sem serviços à altura, sem equipamentos, sem pessoas e sem conhecimento prático.
Há meses que se está à espera disto. Em Portugal e noutros países. No mundo inteiro. Como se explica que não haja máscaras para os médios e os enfermeiros, que faltem os equipamentos de protecção e transporte de doentes, que faltem ventiladores, luvas, máscaras, álcool, desinfectante, papel higiénico e reagentes? Há semanas que sabemos que isto ia acontecer. Há muito que devíamos estar preparados. Mais bem preparados, pelo menos.
Esta semana, a evidente falta de sintonia ou de convergência entre Presidente, Governo e Parlamento, a propósito do estado de emergência, foi sintoma aterrador, pela aparente falta de consciência e responsabilidade. Mas, finalmente, uma réstia de sensatez permitiu um acordo em que a regra geral está aprovada e o governo trata agora de assegurar a eficácia prática e gradual das medidas e das acções. Mesmo com reserva mental e com manha política, foi importante os três terem chegado a este acordo. Mas não esqueçam os ventiladores, as máscaras, as luvas e os reagentes. É aí que se perdem os combates, não nas leis.
Criámos uma sociedade de heróis vácuos, de espectáculo e de satisfação imediata, sem medo, sem amanhã e sem futuro… Fizemos uma sociedade de produto e marca, de performance e produtividade. Inventámos uma sociedade de banalidades e futilidades, de falso brilho e de satisfação efémera. Concebemos uma sociedade que idolatra o risco, sem se dar conta de que esse valor é geralmente destruidor de pessoas e de sentimentos. Houvesse um pouco de medo, de receio do inútil e do vistoso, e talvez estivéssemos mais bem preparados para esta praga.
Público, 22.3.2020

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