2.5.20

À MARGEM DAS REGRAS

Imagem colhida em "Um olhar Povoacense"
Por A. M. Galopim de Carvalho
Em tempo de paz, sem perspectiva de guerra no horizonte, e feita a recruta, a vida no quartel, nos anos em que a vivi (1952-1954), era uma pasmaceira. Cumpridas as tarefas que a todos competiam, o resto do tempo era uma espera para o dia seguinte.
Uma regra de ouro de um miliciano era estar “desenfiado”, um termo militar, muito usado em artilharia, que quer dizer fora do alcance da vista. Outra regra era, no caso contrário, dar a impressão de que se ia em serviço, com passo firme, decidido e, de preferência, com um papel na mão. Estar à vista, parado ou a deambular sem destino, era condição quase certa para que um superior o chamasse e lhe desse uma qualquer incumbência que, na maior parte dos casos, ele havia recebido de um superior dele.

Por exemplo, o comandante do regimento encarregava o segundo comandante de resolver uma dada tarefa. Este, um tenente-coronel, chegando ao seu gabinete, chamava um major a quem entregava da sua resolução. Por sua vez, este graduado declinava-a num capitão. E era nesta fase que um subalterno como eu podia ser apanhado, se estivesse à vista, com ar de desocupado.
— Ó nosso alferes!
— Eu, meu capitão?
— Sim, você! Vê aí mais alguém? Vá ao parque auto e confira este inventário.
E agora, das duas uma: ou eu tratava, pessoalmente, do assunto ou, o que era mais certo, chamava um furriel, que sempre descobria um cabo que acabava por fazer o trabalho. Cumprido este, o nosso cabo entregava-o ao furriel e, através da mesma cadeia, mas agora em sentido inverso, o dito inventário, conferido, chegava às mãos do comandante.
Era, pois, sempre em passo rápido, decidido, e com um rolo de papel na mão que, nas muitas tardes de ociosidade, atravessava a parada, a caminho das cozinhas ou da oficina do sargento carpinteiro. Das cozinhas porque aí, de vez em quando, me juntava a meia dúzia de rapazes da minha geração, independentemente das graduações de cada um, para saborearmos uns queijos do Redondo, um tinto das Cortiçadas, um coelho frito trazido pelo furriel Silva, caçador num fim de semana de licença, ou de umas farinheiras assadas vindas do fumeiro dos pais do 127 de 53.
O chefe cozinheiro, um soldado pronto, rapaz com quem eu jogara à bola (de trapo) no grande terreiro dos Salesianos, que participava nestas confraternizações, arranjava-nos um canto resguardado, sendo exímio na preparação dos petiscos, não raras vezes retirados do caldeirão do rancho, condimentados e apurados à parte e a preceito.
Todos sabíamos que aquele convívio era passível de procedimento disciplinar, mas nunca houve uma denúncia e só são boas as recordações desses momentos.

Outra das fugas que, com relativa frequência, fazia dentro do quartel, tinham por alvo a oficina do sargento carpinteiro. Autodidacta em muitos saberes e de uma notada sensibilidade poética, era um artista a trabalhar a madeira, encafuado no seu espaço, para ele um santuário. O quotidiano do quartel, praticamente, apenas o solicitava para trabalhos menos nobres, rudes, tais como fazer um caixote, colocar umas prateleiras, armar um alpendre ou um estrado na parada, em dia de cerimónia militar.
Tudo isto ele fazia de bom grado, com rapidez e perfeito, granjeando a estima dos superiores, restando-lhe muito tempo para dar expressão à sua criatividade e alimento à sua curiosidade intelectual.

Só passada a recruta, com mais tempo disponível, me apercebi que tínhamos ali um exímio marceneiro, restaurador de móveis antigos e, ao mesmo tempo, um filósofo. De estatura mediana, seco de carnes e meio dobrado pelo ofício, usava óculos de lentes cortadas a meio, só para ver ao perto, e lápis atrás da orelha. Ao canto da boca, pendida, estava sempre uma ponta de cigarro, daqueles que se enrolavam à mão, a maior parte do tempo, apagada. A passar constantemente os dedos pelos ralos cabelos, lisos, alourados, a virarem a branco, o mestre, como eu o tratava, andava o dia todo de cabeça descoberta. Perdera o bivaque ou, melhor, nunca sabia onde o deixava nem procurava encontrá-lo. Ao cruzar-se com um superior, levava a mão à altura da testa e, num gesto descontraído, e sem tirar a beata da boca, mesmo assim descomposto, fazia uma espécie de continência, sem parar. A não ser um ou outro superior, recém-chegado à unidade, mais militarista, todos o aceitavam naquele seu modo de estar. O sargento carpinteiro era uma espécie de paisano excêntrico dentro do quartel, uma excepção consentida na uniformidade própria da instituição militar.
A carpintaria, a um extremo do vasto campo de instrução, era um verdadeiro “atelier de artista, cheio que nem um ovo, onde obras finas começadas se misturavam com restauros há muito por acabar. De chão nunca varrido, os montes de serradura e raspas acumulavam-se na base de pranchas e tábuas empinadas à parede onde, suspensa de pregos e escápulas, saltava à vista uma profusão caótica de tudo e mais alguma coisa. Ir para a oficina do sargento carpinteiro, de quem me tornei amigo, tinha o sabor da evasão. Só entrava ali, de tempos a tempos, uma ordenança a transmitir-lhe algum recado ou a chamá-lo, o que era para ele sempre uma interrupção forçada. Mais parecendo um civil, saía, então, do seu canto, com ferramentas nos bolsos e tábuas nas mãos ou aos ombros, em passo rápido, alheio a tudo e todos, só se sabendo ser um militar pelas divisas de segundo sargento, quase imperceptíveis pela falta de Solarine no latão de que eram feitas.
Com fama de bom jogador de xadrez, a chegada de novos aspirantes milicianos trazia-lhe parceiros para jogos intermináveis e entusiásticas conversas aos fins da tarde. A primeira vez que ali entrei trouxe-me à lembrança a oficina do mestre Roberto, onde, como já escrevi por diversas vezes, me iniciei no gosto de trabalhar a madeira, um gosto que nunca perdi.

Os cantares das serras e serrotes, das plainas e garlopas, o som do ferro de pua, qual bicho da madeira, a abrir caminho, o do rebolo de amolar a dar desbaste às ferramentas de corte, voltaram aos meus ouvidos quase duas décadas depois. Também os cheiros das diversas madeiras, os da grude, dos vernizes e outros me trouxeram à memória aquele meu pequeno mundo onde brinquei julgando ser aprendiz. Com ele passei a conhecer muitas madeiras para além do pinho, do carvalho, do azinho ou da nogueira, que me eram familiares. Vinhático, cerejeira, andiroba, pau-santo, acácia, vidoeiro estavam ali para que as pudesse conhecer, algumas delas em antigos móveis restaurados ou à espera de o serem ou, ainda, em restos de outros. O mestre soprava-os do pó, explicava-me as suas particularidades específicas e falava-me das suas características como matéria-prima da sua arte.
— Esta aqui – dizia ele, encorajado pelo meu interesse – é angelim. Resiste ao tempo como nenhuma outra. Só o fogo dá conta dela. Veio da Índia. E esta – deu-me a cheirar – é criptoméria. É oriunda do Japão, mas dá-se muito bem dos Açores.
Foram muitas as horas que passei “desenfiado” neste canto esquecido do quartel, umas dando largas a uma vocação que não tivera continuidade, outras, em longas conversas com o sargento. Curioso dos meus saberes no domínio da preparação académica que era a minha, ensinou-me outros, os que aprendera nos livros e os que a vida lhe facultara.

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