3.5.20

Grande Angular - Fechar é fácil, abrir é difícil

Por António Barreto
Já todos percebemos: começa o mais difícil. Não é que, até agora, tenha sido fácil. Não. Pelo contrário. Mas o que nos espera é mais complicado, perigoso e incerto.
Dentro de algum tempo, com estudo sério, seguido de confronto, em regime de liberdade, saberemos o que se tem passado. Os resultados de Portugal são bons ou apenas medianos? Se doze países europeus fizeram pior, vinte e cinco fizeram melhor. Mesmo assim, a nossa condição merece atenção. Mas sobretudo explicação. Deve-se a quem, exactamente? Às autoridades? Aos Portugueses? Ao Serviço Nacional de Saúde? Aos médicos e aos enfermeiros? E deve-se a quê? Ao fecho prematuro? À quarentena? À disciplina?
Os que não gostam do governo dizem que o que é bom se deve aos Portugueses e aos profissionais. Os que gostam do governo dizem o que se espera, que os ministros e os directores-gerais foram impecáveis. Há ainda os que optam pela sorte, outros pelo milagre.
Por enquanto, com tanta gente a saber tanta coisa, não ficámos mesmo a saber nada. Mais tarde, com menos gente a saber tudo, aprenderemos mais. De qualquer modo, fica uma consolação: os que mais ajudaram na explicação e na compreensão foram alguns cientistas. Há qualquer coisa na ciência bem exercida, com escrúpulos e contenção, com dúvida e experiência, com liberdade e cultura, que nos deixa em paz com a humanidade, nem que seja por umas horas…
Aprender a lição ou fazer a revolução? Esta última tem os favores dos militantes, dos intelectuais e dos artistas. Há tantos a pensar que se deve aproveitar a “janela de oportunidade”, como agora dizem os papagaios! Ou então a “transformar os problemas em soluções”, como garantem as mesmas aves! Todos os dias se conhecem novas propostas. Ultrapassada a crise do vírus, há que mudar de modelo de desenvolvimento, transformar as relações de trabalho, remodelar os padrões de consumo, repensar o ambiente e o clima, estabelecer novas regras da democracia e ultrapassar o capitalismo. Exige-se já o grande debate nacional sobre o tema, assim como um olhar radical sobre o estado da sociedade actual. Pensa-se todos os dias na sociedade futura e nas relações sociais imaginadas por intelectuais que mantém relações esporádicas e intermitentes com a realidade. Para já, há que mudar a Constituição. E sair do Euro… Dizem.
E, no entanto, o mais provável é que, logo a seguir à resolução da crise sanitária, o essencial seja arranjar emprego, encontrar clientes, procurar novos mercados, recuperar o tempo perdido nas escolas, estudar o que se esqueceu, semear o cereal, tratar do vinho e alimentar o gado. Será um choque para todos os que se preparam para o grande debate e a oportunidade do século! Será uma frustração medonha para os que pretendem nada mais, nada menos, do que “alterar o paradigma de organização das sociedades”!
Seria tão mais interessante que os esforços e a imaginação se concentrassem em objectivos simples, ao alcance de uma geração! Objectivos mais reais, práticos e menos ilustres do que revoluções gloriosas que se transformam em catástrofes.
Já se percebeu que Portugal sofre de dois problemas profundos: a falta de previsão e as falhas de organização. Na saúde, por exemplo. Temos um número considerável de médicos, mas um número ridículo de enfermeiros e técnicos. Um serviço de saúde repousa nos dois, não só nos primeiros, nem só nos equipamentos. Sabe-se que Portugal é um dos países da Europa com mais médicos e menos enfermeiros por habitante. As filas de espera para as cirurgias e as consultas não podem ter como explicação a “falta de médicos”. Não faltam os medicamentos mais modernos, os tratamentos mais caros e os equipamentos mais sofisticados. Mas faltam máscaras, desinfectante, luvas, reagentes e zaragatoas. Em vez de rosnar contra o Serviço Nacional de Saúde ou de querer liquidar a medicina privada, não seria mais interessante e eficaz ocuparmo-nos de simples questões de organização e disciplina?
Os casos mais chocantes até hoje foram seguramente os que ocorreram em lares com infecção generalizada e velhos abandonados e mortos. Assim como com as “pousadas” para refugiados criadas por negreiros com eventual cumplicidade de serviços oficiais. Sem falar nos aumentos de vencimentos que foram esquecidos, nos pagamentos de indemnizações e subsídios que não chegaram e na liquidação de dívidas do Estado. Episódios destes são mais importantes, para retirar as lições devidas, do que declarações tonitruantes sobre a mudança de modelo social!
Portugal tem reservas de cereais para meia dúzia de dias. Um problema laboral ou de mau tempo deixa em crise a alimentação dos animais e dos humanos. Também temos ridículas reservas de petróleo, oleaginosas e adubos. Há décadas que é assim. Vivemos na dependência dos importadores, dos comerciantes e dos produtores internacionais, das empresas de transporte, dos sindicatos e dos estivadores. Por isso o Estado português tem uma reduzida capacidade de negociação em caso de emergência ou de conflito.
Fazer uma revolução e alterar os modelos de turismo e viagem, como tantos propõem; nacionalizar a banca e as grandes empresas privadas; liquidar o ensino privado; privatizar os últimos serviços públicos; e estabelecer o rendimento mínimo universal e incondicional, nada disto resolve os problemas dos cidadãos, nem corrige os verdadeiros defeitos postos a nu, como sejam a falta de previsão e a desorganização. 
As autoridades têm revelado várias qualidades e outros tantos defeitos. O importante é acertarem, não é serem amáveis. Têm-se perdido em propaganda política intolerável, a que explora o medo. Os governantes têm-se exibido como técnicos e massacram a opinião com pormenores que ninguém compreende. Assim, não se dá segurança, só se aumenta a incerteza. Mas deve acrescentar-se que, até certo ponto, as autoridades surpreenderam: mostraram-se mais responsáveis do que habitualmente. Depois de terem maquilhado a realidade com optimismo, começaram a pensar que dizer a verdade era mais importante. Quando se tratou de fechar, mostraram-se seguros e marialvas. Depois, começaram a corrigir e a rectificar os próprios erros. Agora, chegámos à fase da abertura. As autoridades parecem menos propagandísticas, mais incertas, com receio de errar. Em certo sentido, é melhor assim.
As próximas semanas vão ser cruciais para percebermos se estamos na boa via ou se cometemos erros medonhos. As alternativas são todas fatais: educação ou contágio de jovens; protecção absoluta ou infecção; prevenção ou tratamento. Saúde ou economia.
Abrir é difícil.
Público, 3.5.2020

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1 Comments:

Blogger opjj said...

Caríssimo, UM 1º ministro que faz juras e juras e mente que não aplica a austeridade. Eu tenho próximos que nada recebem desde Fevereiro. A isto chama-se o quê?
Quando um 1º ministro não paga milhões a fornecedores,a isto chama o quê?
Quando um 1º ministro não é capaz de DISTRIBUIR máscaras (como outros países fazem)a centenas e centenas de milhares pobres e desempregados que não têm para comer, a isto chama-se o quê?
Altamente fanfarrão que se ri por nada!
Cumps.

4 de maio de 2020 às 18:50  

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