Grande Angular - Provavelmente, o pior…
Por António Barreto
Pode não ser, desde o fim da segunda guerra mundial, o mais grave. Nem, desde 1974, a pior crise política. Talvez não seja, desde há meio século, o ano da mais difícil crise económica. Nem seja, socialmente, o mais dramático. Mas é tão difícil! Sobretudo porque tudo parece convergir para agravar as dificuldades: política, economia, pobreza, saúde e justiça. Este fim de década é o pior momento de crise e dificuldades que Portugal vive desde a fundação da democracia.
Os mais novos não viveram. Os mais velhos não recordam. Só alguns não esqueceram. Já vivemos tempos muito difíceis. Com os obstáculos e as ameaças à democracia, em 1974. Os repatriados de 1975. As crises económicas e os pedidos de intervenção financeira. A crise da dívida, a assistência internacional e a austeridade. A inflação a mais de 30% e o desemprego a mais de 15%. Mesmo assim, com este tremendo passado recente, vivemos, provavelmente, o pior momento.
Também no mundo já se viveu pior, com efeitos para Portugal. O fim da guerra no Vietname e as guerras asiáticas que se seguiram. As ameaças e os perigos, assim como os violentos episódios de guerra conhecidos, nos Balcãs, no Próximo Oriente e em África. O desmembramento do império soviético e os múltiplos conflitos que se seguiram, da Jugoslávia à Chechénia, da Ucrânia à Arménia. O crescimento incessante das guerras da droga, dos minérios, dos armamentos e dos imigrantes trouxe violência para quase todos os cantos do globo. Também o mundo vive hoje um momento de extrema dificuldade.
A decadência relativa de um poder indiscutível, o americano, projecta sombras sobre a humanidade. As perdas de hegemonia têm sempre consequências temíveis. Em paralelo, a ascensão de novos poderes, de uma nova grande nação à partilha do poder mundial, a China, deixa toda a espécie de interrogações e de novas tensões de efeitos imprevisíveis. E os europeus já estão conscientes de que, sem a América, contra a Rússia e apesar da China, a Europa não resiste à subalternidade.
Note-se bem como quase tudo o que a Europa fez nos últimos anos foi reagir, retomar, equilibrar e salvar. Já não cria, já não avança e já não inova. Reage e resiste. As divisões europeias, o Brexit, a ascensão de movimentos anti-europeus, o recrudescimento do nacionalismo, as divisões entre países e partidos revelam uma Europa a perder o Norte, à deriva e a tentar recuperar o que ainda é possível. Ao que se podem acrescentar as crises de demografia, da imigração e do refúgio. Nunca como agora, nos últimos setenta anos, andaram pela Europa hordas de milhões de vagabundos, esfomeados e doentes, nómadas da sociedade industrial, sem protecção nem futuro, à procura de sobreviver.
Para além da morte e da doença em doses aflitivas, a pandemia revela confrangedora desigualdade entre países ricos e pobres, entre poderosos e destituídos, entre influentes e despojados. Sofre-se nos lares infantis e morre-se nos lares de idosos. É-se mais contagiado nos bairros suburbanos, nos locais de desempregados, nos guetos de imigrados e nas áreas subdesenvolvidas. Há meios científicos, recursos financeiros, poderes políticos e gestão capazes de contrariar a lógica letal da desigualdade e da pobreza. Mas não serão aproveitados, a tempo, tanto quanto se poderia desejar e seria legitimo esperar.
Portugal partilha os problemas da Europa e do mundo, mas acrescenta os seus próprios. Vivemos uma inédita convergência de crises e dificuldades. Sem a tragédia de uma grande guerra, sem o drama dos repatriamentos forçados e dos campos de concentração ou refugiados, mas com a acumulação de crises e ameaças. Iniciamos a terceira década do século XXI com uma enorme crise sanitária; uma ameaçadora crise económica e social; a manifestação drástica de desigualdades profundas; acrescidos fenómenos de pobreza; reduzidas capacidades de criação de emprego e de novas produções; poucos grupos económicos à altura das necessidades de desenvolvimento; sem capitais próprios privados ou públicos; e com soluções políticas de enorme fragilidade. Os grandes sistemas nacionais, saúde, segurança social, educação e justiça encontram-se à beira de uma crise sem exemplo e com difíceis soluções.
Os portugueses não são culpados de tudo, nem responsáveis por todos os factores de crise. Só de alguns e já não são poucos. Mas são responsáveis por grande parte das soluções, das nossas soluções, das soluções que nos dizem respeito, a começar pelas políticas, pela congregação de esforços, pela criação de confiança, pela manutenção da democracia e das liberdades e pela preservação de uma sociedade decente.
As negociações políticas frágeis não anunciam nada de bom. A destruição das grandes empresas nacionais e as vendas injustificadas e em más condições de grupos, empresas e património cortaram-nos as mãos e os meios. A incapacidade de combater a corrupção e de castigar os corruptos é uma deficiência fundamental. Os absurdos termos de “limpeza” e equiparados já surgiram na boca de pelo menos dois candidatos (André Ventura e Ana Gomes), o que apenas traduz impotência e populismo barato.
As eleições presidenciais não vão resolver nenhum destes nossos problemas. Nem sequer vão definir os moldes da acção política futura. Muito menos vão determinar as condições de governação. Em muito especiais circunstâncias, podem ajudar, mas não resolvem. Em finais de Janeiro, ultrapassada que vai estar a eleição presidencial, vamo-nos encontrar no ponto em que estamos, talvez em piores circunstâncias. Mais infectados, mais desempregados e mais pobres.
Apesar de antiga, com tradição e cultura, história e património, a sociedade portuguesa está hoje pobre institucionalmente, tanto na esfera pública como na privada. Tanto na economia, como na política ou na cultura. É, no entanto, aí, que se encontram soluções e meios. No reforço das instituições, públicas e privadas, na consolidação de organizações humanas e sociais capazes de proporcionar a reflexão, de estimular a acção e de dar uma oportunidade aos esforços de construção gradual e racional.
Este próximo ano será exigente como poucos. É possível que se encontrem soluções e remédios para o mais urgente, o que permite sobreviver. Mas de nada servirá o esforço se não preparar o médio e o longo prazo. E podemos ter a certeza: só com instituições mais fortes venceremos. Golpes de sorte e de génio, habilidades e invenções de nada servirão. Instituições e liberdade, sim.
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